Não deviam ser nem 8 horas da noite quando ela girou a chave na porta. Seu gato, Petit, veio imediatamente reclamar a demora, misturando miados de fome e inconformação a enroscadas infinitas por entre as suas pernas. Ela se agachou e acariciou o gato sob as orelhas, que ficou ali parado, saboreando os carinhos.
Ela entrou e depositou uma sacola de compras sobre a pequena mesa da cozinha. Dois itens, apenas, que retirou de forma quase cerimonial: uma caixa de chocolates belgas e uma garrafa de Jack Daniel's.
"Esta será uma noite selvagem...", sorriu consigo mesma.
Não é que ela estivesse triste ou coisa assim. Bem o contrário. Estava feliz, centrada - talvez pela primeira vez -, cercada de bons amigos, seguindo uma carreira promissora e com planos sólidos de viajar, após tantos anos, para a Índia, como sempre havia sonhado, desde menina.
Sozinha.
A verdade é que ela teve uma epifania, repentina, enquanto virava a esquina para voltar para casa. Fez uma inversão proibida e entrou na primeira delicatessen que encontrou. É que ela queria chocolates e whisky. Queria sentar no sofá da sua sala, vestindo nada além de uma camisa gigante e um par de meias surradas, vendo filmes românticos, com seu gato Petit adormecido sobre o seu colo, acompanhando as luzes da cidade desaparecendo na janela, como constelações sem nome.
Era isso que ela queria. Somente isso.
Havia se obrigado a tanta coisa, submetido o seu corpo, o seu prazer, o seu desejo, os seus planos a um plano que não era dela. E por tanto tempo. O plano dele. Queria estar magra para ele, atraente para ele, e se sacrificava com dietas malucas e sessões suicidas de academia, onde saia quase arrastada pela exaustão.
"E para quê?", perguntava-se ao voltante, "gente, para quê?".
Quando aquele relacionamento inútil chegou ao fim, aquela lesma de relacionamento que se arrastara sem propósito por tanto tempo enfim foi salgada até a morte, ela descobriu que não queria mais perder tempo. Nunca mais.
Não queria mais entregar o seu melhor ao vento, ao abismo, aquela troca sem volta. Seria feliz, com seus 10, 15 quilos a mais. Com seu gato, com seus amigos, com seu trabalho louco e a sua sonhada viagem para a Índia. E seria feliz, verdadeiramente, pela primeira vez em sua vida.
Entrecortava bicadas do whisky com mordidas do chocolate e suspirava, quase enamorada, enquanto sentia aquela mistura cremosa, doce, ácida, morna, mergulhando o seu rosto numa névoa de relaxamento sublime.
Lamentava aquele tempo perdido. Lamentava tê-lo elogiado tanto quando ele mesmo era o oposto de qualquer padrão de beleza. Ele, sempre ele, sempre ele; aquela vida patética, em torno do trabalho que ele julgava ser o mais importante do mundo; o seu carro de luxo, o seu cachorro de raça estúpido. Seus hábitos e manias esquisitas, sua egomania, a maior de todas, ele que se amava tanto.
"Ah, benzinho, se você soubesse como não está com essa bola toda...".
Ria, mordendo com gosto mais um chocolate.
Ela preferiu desaparecer. Sumir. Evaporar. Ignorou as suas ligações que foram, gradualmente, se extinguindo; ele, que perdia interesse em tudo que não tivesse interesse por ele. E notou, então, enfim, como a vida era mais leve, mais simples, mais colorida, quando se pode vivê-la para si e não para os outros.
Ela percebia que todos aqueles clichês de filmes banais e livros de quinta categoria eram mesmo reais. E queria, realmente, que ele se danasse, que fosse para o inferno, que sumisse do mapa. E sorriu, num bálsamo inédito, quando chegou a essas conclusões tão óbvias e repentinas.
Decidiu que seria sozinha. E daí? Melhor, decidiu que seria sozinha até encontrar um rapaz que cantasse canções de Cole Porter. Até esse dia chegar, seria sozinha. E abraçaria a felicidade, plena, inegável, inquestionável, incorruptível, insequestrável, de sê-lo.
A noite ía navegando em sua janela, pesando o peso do mundo sobre as suas pálpebras. Ela estava adormecendo, lentamente, sob uma fumaça açucarada, entorpecida. Um casal trocava um beijo apaixonado na televisão, era tudo o que ela se lembrava, enquanto o mundo ficava cada vez mais escuro e silencioso.
Ela havia dormido.
O dia amanheceu preguiçoso na janela, lentamente fazendo-a acordar. Cuidou do seu gato, ligou a cafeteira, lavou o rosto, escovou os dentes, ainda semi-acordada. Os cabelos revoltos, a maquiagem borrada, a camiseta surrada balançando como uma bandeira, as meias encardidas lustrando o chão com o seu caminhar desinteressado.
"Você deveveria me ver agora, benzinho", riu de si mesma com a escova de dentes enfiada na boca.
Arrumou-se para mais um dia de trabalho. Os cabelos cor de areia amarrados num rabo de cavalo, um traje executivo, uma bolsa pequena, uma pasta de couro, a maquiagem simples, sapatos bonitos, simples mas elegantes.
Beijou seu o gato na boca, "comporte-se!", e fechou a porta atrás de si. Respirou fundo e caminhou pelo longo corredor de apartamentos rumo à lata de lixo do seu andar, onde depositou a garrafa vazia e uma caixa bonbons que chacoalhava com uma centena de papéis amassados.
Sorriu quando arremessou-os na grande lata ferro. A sua noite selvagem.
E então caminhou para o elevador. Foi aí que ouviu, sim, ouviu, para o seu espanto. Aquele assobio, cada vez mais perto, inconfundível. Aquela voz docemente desafinada, chegando aos seus ouvidos como uma prece. O rapaz vinha na mesma direção que ela. E ele sorria, cantarolando, alheio ao mundo.
"When I knew that you could care,
So taunt me, and hurt me,
Deceive me, desert me,
I'm yours, till I die
So in love...
So in love with you..."
Ela parou, flutuante, observando-o, em silêncio. Uma lágrima solitária escorreu pela sua bochecha, amparada por um sorriso que vinha iluminar o seu rosto.
É que ela havia encontrado um rapaz que cantava as canções de Cole Porter.
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