quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O VERÃO DE 89

Quando eu, meus irmãos, primos e os outros meninos da rua nos encontramos, ainda hoje, é impossível não lembrar do verão de 89. Aquela lembrança sofrida, que parece beliscar algum canto da alma, quando nos esbarramos nos supermercados.

Não pelos bonecos ou desenhos animados; pelas músicas, roupas questionáveis ou pelas brincadeiras. Pelos filmes de aventura no cinema ou os lanches da tarde. Nem pelos banhos de piscina, as partidas de futebol ou os primeiros beijos que roubávamos das meninas naquelas brincadeiras de um tempo inocente que parecia durar para sempre. Um tempo que nunca passaria.
 
Não. É de Sabrina que lembramos. Aquela menina linda, aquela menina sem mãe, aquela menina flutuante, silenciosa, frágil, de olhos abissais e voz de feitiço. Sabrina, com seu cheiro de limão e canela. Sabrina, por quem cada um de nós foi perdidamente apaixonado.
 
De todas as meninas, Sabrina era a única que brincava com a gente. A única que não se importava de estar cercada por meninos. Ela era nossa, no sentido mais lindo e puro da palavra. Nossa amiga, nossa estrela da sorte. Sabrina, que queria ser astronauta ou rainha de um reino distante. Sabrina, que até hoje habita os meus sonhos.
 
Ela vivia com o seu pai. Sua mãe os havia abandonado quando Sabrina nasceu. Sem irmãos, sem avós, sem qualquer sombra de família que não aquele homem que odiávamos com toda a energia que habitava os nossos corpos imberbes. Aquele homem de olhos vermelhos e odor forte. Aquele cheiro de cigarro e bebida. Aquela barba azulada, como a de um pirata. Aquela voz rouca, baixa, assustadora que ainda consigo ouvir. Aquele homem cuja presença na janela era o suficiente para que Sabrina nos deixasse e voltasse para casa. Ela desaparecia à sombra do seu pai. Nosso inimigo mortal, jurado.
 
Naturalmente, não tínhamos capacidade de entender a dimensão do que acontecia com Sabrina. Hoje em dia, após a maturidade nos ter versado na capacidade humana para o bem e para o mal, sabemos que Sabrina foi, em verdade, uma prisioneira. E me corta a alma, ainda hoje, pensar se poderíamos ter feito algo. Se aquele verão poderia ter sido diferente.

Se poderíamos ter salvado Sabrina.
 
Ela vinha brincar com a gente e fazíamos um esforço para ignorar as marcas no seu corpo, os arranhões. Sabrina tropeçava demais, assim nos explicava, com aquele seu sorriso tímido que nos desarmava.
 
"Foi o vento que me derrubou no chão e quebrou o meu braço", ela nos dizia.
 
"Não, eu sei que não foi o vento", eu ainda digo para mim quando vejo meu reflexo grisalho no espelho. Quase todos os dias, como uma oração. "Por Deus, eu sei que não foi o vento"
 
Ela sorria, puxava-nos pelo braço, e ganhava a dianteira. Escalávamos então as copas das árvores e conquistávamos arranhões genuínos que, misturados aos de Sabrina, camuflavam a atmosfera ao nosso redor. Éramos todos nós meninos arranhados, machucados. Durante aqueles dias eternos das nossas sonhadas férias escolares. 
 
Um dia, Sabrina não veio brincar com a gente na rua. Esperamos por ela na esquina, por horas, sem sucesso. Mas ela não veio. Dias depois soubemos que Sabrina havia deixado de existir, havia escolhido ir embora, para um lugar onde jamais poderíamos encontrá-la. Sabrina havia partido para o mundo dos sonhos, minha mãe me explicara com olhos derretendo de lágrimas. Aquela tragédia. Aquele verão de 89.
 
Nós, porém, escolhemos acreditar que Sabrina havia ido povoar um outro planeta. Ou governar uma terra distante. Sabrina, e seus olhos cor de água, cabelos ondulados e vestidos surrados. Quando fecho os olhos ainda consigo ver as dobras no canto de sua boca, quando ela nos presenteava com um de seus sorrisos acanhados.

A verdade é que ela se foi, sim, e nos levou com ela. De alguma forma nos levou com ela. Para sempre.
 
Porque a vida nunca mais foi a mesma depois do verão de 89.

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