terça-feira, 15 de maio de 2012

O SENHOR DOS GATOS

Durante tempo demais ele tentou entender o seu papel entre eles. Ele não compreendia as suas piadas, não tinha aquela graça natural, aquela elegância, aquele silêncio. Não sabia se comportar como eles. Aqueles saltos precisos, daqueles equilibristas dos muros. Ele era o pior gato do mundo. O desajeitado, o que virava as garrafas, espalhava o lixo, derrubava os vasos das flores. E não compreendia como os outros gatos ainda o aceitavam ali, entre eles, aquele bando de senhores da noite.

Não tinha muito jeito com as gatas, que tampouco davam bola para ele. Não gostava de peixe, nem de leite, nem de escaladas perigosas. Gostava do sol, de deitar sobre a grama. Gostava de correr com as crianças do parque. Gostava de carinhos em seu corpo, de bolas, de pipas.

Ele não conseguia pertencer. Os gatos riam de longe, daquele seu jeito sem jeito. Ficavam todos ali, sentados, em ordem, meio prussianos, enquanto ele saboreva a manhã com a língua ao vento feito flâmula.

Havia aquele abismo entre ele e os outros gatos. Como se estivessem perdidos na tradução. Não se entendiam. Melhor, os outros gatos se entendiam perfeitamente; ele é que parecia se perder nos dialetos. Olhava-os com cara de bobo, sem entender muito bem o que falavam; aqueles planos sem nexo, cheios de artimanhas e estratagemas. Aqueles cálculos precisos que não faziam o menor sentido para ele. Os gatos partiam, em pelotão, e ele ficava para trás. Corria atrás deles, chamava-os, ao que eles corriam ainda mais rápido e desapareciam nas sombras.

Era quando ele se sentia o mais solitário dos gatos.

Mas, ainda assim, era melhor do que vagabundear sozinho pelas ruas. Era melhor que dormir só, nos cantos. Os gatos não eram ruins, pelo contrário; eram companheiros discretos, eram soldados, não dançarinos.

Numa noite particularmente perigosa, o bando estava sendo ameaçado por um homem de olhos vermelhos que parecia ter a altura de um prédio. Ele exalava um odor forte, azedo, por cada poro de seu corpo e olhava para ele e seus irmãos com um ódio paralizante. Olhos que comunicavam maldade. Quando ele os encurralou, naquele beco anônimo, onde os gatos estavam longe de seus deuses, ele percebeu que suas vidas acabariam ali.

Ele e seus irmãos se olhavam. Tremiam, como se cada osso de seus corpos pequenos se mexessem de forma desornedada. Aqueles olhos rasgados, amarelos, azuis, verdes, de cores indefinidas, que comunicavam a mesma coisa. Aquele medo. Aquela sentença. O homem se aproximava, saboreando o que faria ao bando, feito torturador.

Foi quando ele entendeu tudo. Foi quando tudo ficou claro feito o dia.

Ele olhou para seus irmãos, acuados, abraçados no canto, aqueles miados de desespero. E, sem pensar duas vezes, fez seus pulmões e sua garganta explodirem num trovão de sons graves que fizeram o tempo parar, naquele instante.

O homem olhou para ele, imóvel. Seus irmãos olharam para ele, paralisados. Ele se sentia como um gigante, seus olhos abertos feito dois grandes faróis, arfando, as costas se movimentando rapidamente, como uma besta. Ergueu suas presas que pareciam punhais e cerrou seus dentes numa máscara de terror.

O homem tropeçou e caiu num canto, protegendo seu rosto com as mãos, enquanto ele voava ao encontro do gigante de olhos vermelhos, mordendo e estraçalhando sua pele como um boneco de pano. O homem gritava, pedia socorro, se debatia, mas ele sustentou aquele ataque até que seus irmãos tivessem tempo suficiente para fugir.

Olhou-os escalando as paredes, habilidosos, para a segurança. E então soltou seu prisioneiro, que o observava apavorado, imundo, do chão, sob a misericórdia das suas patas. Então, com a elegância de um príncipe duelista, abandonou seu oponente e se retirou, sem olhar para trás. Seus irmãos o observavam, do alto dos muros, saudando-o numa sinfonia desordenada de miados alegres.

Era tudo tão simples. Ele sempre fora um cão.

E, agora, era o senhor dos gatos. 

Um comentário:

ione gonzalez disse...

ah..a dificuldade de se saber de si!texto fantástico,incrivel,mega metafora da impossibilidade de se fazer bem feito ante a propria diferença.Singular este texto,como o cão que não se sabia.Adorei.