quinta-feira, 10 de maio de 2012

CAROLINA E O ANJO

Carolina chegou a Buenos Aires como uma clandestina. Uma estranha, perdida, sem posses, vivendo de sonhos e da ideia que moraria com um artista em San Telmo. Seu namorado argentino, um artista de rua de feições bonitas e olhos dissimulados, ganhava algum dinheiro fazendo bicos. Mas rapidamente Carolina percebeu que estava só, realmente só. E que precisava fazer algo a respeito. Inventar-se ali.

Caminhava, sem muito destino, pelas ruas movimentadas. Navegava os becos e avenidas, de ônibus e metrô, desbravando aquele universo tão novo para ela. Sentia-se dona de si, dona do mundo, contemplando aqueles monumentos, aquela cidade velha e, naqueles instantes, sentia uma felicidade inebriante, maior do que o seu corpo.

A euforia durou a extensão de uma semana. Os monumentos já se repetiam diante dos seus olhos, as ruas tornavam-se lugares comuns, as lojas tão inacessíveis, o tango que ela já não via tanta graça, o sotaque que já não lhe parecia tão charmoso. Sentia-se perdida. Tentou alguns trabalhos, sem muito sucesso; tentou acompanhar seu namorado na rua, também sem sucesso.

E foi em San Telmo, pela primeira vez na sua vida, que Carolina passou fome. E, também pela primeira vez, que decidiu compensar os vazios que corroiam seu corpo com drogas. Anestesiou-se, enfim. Sentada, no chão, as costas magras contra a parede, o sol de tarde pintando seu rosto com tons púrpuras e avermelhados. E, naqueles momentos breves, a vida era menos assustadora.

Não sabia, ao certo, o que fazia ali. O relacionamento provou-se incipiente e sem sentido. Um dia, por diversão, adrenalina, ou pura desistência, Carolina decidiu roubar uma máquina fotográfica. E o fez, com habilidade e sangue frio, sem perceber as câmeras de segurança testemunhando todos os seus movimentos. E os seguranças que a esperavam na porta. Naquele dia, o mais solitário de todos, Carolina apanhou, num quarto nos fundos da loja, pelo seu crime. E não sabia o que mais a incomodava; se a dor no seu rosto, que latejava, ou simplesmente por não se importar.

Eventualmente, os seguranças decidiram deixá-la ir. Não prestaram queixa. Carolina caminhou pelas ruas, sentindo o rosto queimar. Chorava, envergonhada, escondia-se nas sombras. Olhava-se nas vitrines das lojas de grife e não reconhecia o que via: uma garota magra, maltrapilha, cabelos descuidados, suja, doente. E não entendia com clareza a cadeia de eventos que a haviam levado até ali.

Ela era uma menina só. Salvo pelos avós, Carolina não tinha ninguém no mundo. Nenhuma família, nada de irmãos, primos ou tios. Sua mãe havia morrido quando ela era criança e seu pai era um desaparecido cuja existência só era documentada por uma foto, um telefone, um endereço.

Apesar de todo o sofrimento a que se submetia, sua aventura em Buenos Aires acabou se extendendo por mais tempo do que ela podia imaginar. E, eventualmente, ela conseguiu achar algum eixo na passagem dos dias. Arrumou um trabalho como andadora de cães, que dava a ela alguma renda. Cada vez mais dependente de drogas e bebidas, porém, o dinheiro desaparecia de suas mãos. Alimentava-se mal, dormia pouco, não sorria, não aprendia nada. Um grande vazio, um grande hiato que gradualmente começou a fazer eco em sua alma. Carolina decidiu que precisava voltar. Só não sabia como.

Um dia, uma manhã qualquer de terça-feira, Carolina desmaiou no meio da rua. É a sua última lembrança de Buenos Aires. O céu sem nuvens, o dia ensolarado, as árvores e postes rodopiando ao seu redor, o chão sujo e frio sob a sua bochecha. Uma lágrima escorrendo pelo seu rosto, formando um pequeno rabisco no concreto.

Percebeu que algo, alguém, um homem a ajudava. Respondia as suas perguntas mas percebia que ele não compreendia o que ela falava. Mostrou seus documentos, aquele emaranhado de papeis jogados na sua bolsa puída. Disse que não tinha dinheiro, que não fazia uma refeição digna havia dias e que nem se lembrava ao certo onde morava. "San Telmo", ela dizia. "San Telmo".

Sentiu aquela mão firme puxando-a. Aquela voz calma, de orientação. Aquele vulto nublado, sem rosto, que ela não conseguia enxergar com clareza por detrás dos seus olhos confusos. Seus olhos famintos, seus olhos químicos. O homem falava, pausadamente, ao que ela apenas concordava sem entender uma palavra. Ele conversava ao celular, olhava para ela, tocava a sua mão com carinho. Ele sorria. Ela sabia que ele sorria.

Carolina se lembrava dos barulhos. Portas abrindo e fechando. Motor de carro, buzinas. A chegada a um aeroporto, aquele barulho inconfundível da navegação aérea. Um portão de embarque, sorrisos educados, mãos carinhosas sobre seus ombros, levando-a para frente, para corredores, para cadeiras. E então absolutamente nada. Um vazio, uma noite sem fim.

E então Carolina acordou. Em casa. Na casa dos seus avós. Estava de volta. Não sabia como, mas estava de volta. Observou-se ali, no quarto da sua infância. Aquelas bonecas cheias de nomes, aqueles animais de pelúcia, as fotografias sorridentes. Havia tomado banho, seu cabelo estava penteado, vestia uma roupa limpa e deitava seu corpo exausto sobre lençóis que cheiravam a amaciante. Soluçou baixinho, sozinha, completamente tomada pela delícia absurda daquelas coisas simples. Sorria, com as mãos sobre os seus olhos úmidos. Olhou pela janela, o sol se pondo. Adormeceu por horas. Dias, talvez.

A manhã seguinte veio como uma revelação. Carolina queria um eixo. Queria buscar o tempo perdido, queria acertar as contas com o destino. Ela buscaria o seu pai.

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