domingo, 27 de maio de 2012

BARTOLOMEU VALENTIN E O EXPERIMENTO IMPOSSÍVEL

Bartolomeu Valentin era um homem pacato, de coração bom e ambições limitadas. Dedicava os seus dias ao seu trabalho inofensivo, como professor de física aposentado, e ao único hobby da sua vida: modelismo. Bartolomeu era apaixonado por criar, construir e pintar aeronaves. Aviões de guerra, balões, foguetes e todo o tipo de equipamento aéreo. Desde criança, sonhava com o céu, feito pássaro sem asas. 

E a sua vida era boa, confortável e até seria ideal, não fosse um pequeno detalhe: o seu casamento. Ele era refém de uma mulher que parecia ter saído de uma história de terror ou, pelo menos, de uma piada de mau gosto. Uma megera, que controlava os seus passos, seus hábitos, cada segundo de sua existência tão irrisória. 

Tinha poucos [mas bons] amigos, com quem apreciava beber ocasionalmente num pub não muito longe de casa. Quando podia. Quando conseguia. Melhor, quando fugia. Nessas ocasiões fugazes, furtivas, quase etéreas, ele se pegava cercado por aquele punhado de homens sorridentes, felizes e, por alguns momentos breves, deixava-se contagiar por aquela alegria; como se ele também fosse feliz. Abraçavam-se, lembravam da juventude, dos planos e das escolhas equivocadas que os levaram até ali, com cada vez menos cabelo sobre as cabeças e com cintos cada vez mais apertados ao redor das cinturas. Riam, gargalhavam, apesar de todos ali também parecerem guardar seus punhados de melancolias inevitáveis.

Voltava para casa, a passos vagarosos, um caminhar em stop motion. Um caminhar de quem não quer voltar. Mas eventualmente avistava sua casa no horizonte, após a última esquina. A pequenina luz do quarto acesa, a silhueta da sua mulher na janela, esperando-o como um carcereiro. Respirava fundo, olhava para o céu sobre a sua cabeça e, como se conversasse com os astros, buscava força para os últimos metros, para a chave à porta, para os degraus vagarosos, para os gritos que antecediam o momento em que ele, enfim, depositava sua cabeça sobre o travesseiro. Suspirava. Pensava no seu pai, falecido, na sua mãe e irmãos de quem havia se distanciado por causa dela. Sentia-se só e adormecia sob o compasso da sua respiração lenta sob a coberta. 

Um dia, um belo dia, um dia qualquer em verdade, como tantos outros, Bartolomeu decidiu que chegara ao seu limite. Correu para a garagem, para a companhia dos seus modelos coloridos, e trancou-se como uma criança de castigo. Ouvia sua mulher gritando, do outro lado da porta, aquela série de absurdos que ele já havia se acostumado em ouvir. Sozinho, seguro pela porta trancada, fazia mímicas e dublava sua mulher, repetindo cada palavra, como num teatro amador; aquelas ofensas que ele já sabia de cor. E até conseguia rir enquanto fazia isso.

Ela o ouvia trabalhar, aqueles barulhos diferentes, algo de martelo, algo de serra, algo de explosão controlada. Bufava, batia na porta, ameaçava abandoná-lo. Mas Bartolomeu não respondia. Ao final dos dias, saia da garagem, fazia suas refeições, tomava banho e dormia. Sua mulher até tentava descobrir que diabos "aquele homem inútil" fazia na garagem, mas ele desconversava. "Modelismo", respondia, de olhos fechados e de costas para ela na cama. 

Às vezes voltava para o quarto com a roupa queimada, um olho roxo, machucados nas mãos, ao que sua mulher revirava os olhos, com preguiça de averiguar como ele havia se ferido. Dava-lhe as costas. E ele sorria, deitado ao lado dela, também de costas. Desligava a luz do abajur, um sorriso tímido, saboreando o seu segredo. Aguardando ansiosamente pela manhã seguinte, para correr à garagem, para o seu experimento impossível.

Tempos depois, sua mulher estava na cozinha, com uma xícara de chá na mão, quando a casa inteira começou a tremer sob seus pés. As paredes pareciam dançar, derrubando quadros. Porta-retratos dançantes, poeira despencando do teto, cadeiras mexendo-se como se vivas, o gato fugindo em desespero. Ela deixou a xícara cair no chão, desfazendo-se em mil pedaços e correu para debaixo da mesa, salvando-se daquele terremoto. 

E foi quando ela viu na janela, desenhando-se diante dos seus olhos incrédulos, uma imagem absurda. A garagem abrindo-se como uma flor, rasgada feito papel, aquela chama azulada que parecia cegá-la, e um foguete pequenino, não maior que um armário, ganhando o céu até desaparecer como uma estrela no horizonte. Seu marido havia ido embora.

Um dia, um belo dia, um dia qualquer em verdade, como tantos outros, ela recebeu uma ligação de longe. Aquele chiado, aquela distância. Bartolomeu estava do outro lado do mundo, e ele ria, ele gargalhava, do outro lado da linha, feito um menino. É que ele havia conseguido. E, enfim, dizia adeus. Estava livre, havia aprendido a voar.

Seus amigos sentem sua falta até hoje, quando se encontram para beber. E, todas as vezes, com sorrisos largos nos rostos, erguem seus copos e brindam à história impossível de Bartolomeu Valentin, o homem que foi embora nas asas do seu foguete caseiro.

Um comentário:

ione gonzález disse...

Bárbaro ! genial ! genial !!!me fez rir muito!linda estória!