sábado, 12 de maio de 2012

15 DE ABRIL - DIRECTOR'S CUT

O telefone tinha o peso do mundo em suas mãos. A madrugada sussurrando em seu ouvido, embalada pelo relógio da cozinha, martelando a passagem dos segundos. Ela precisava ligar para ele. Ela sufocava, engasgava. Precisava ouvir a sua voz. Ligava e desligava o aparelho. Não sabia o que dizer. Não saberia. Tantos anos haviam se passado. Tudo estava há tanto tempo para trás. Mas aquilo era mais forte que ela. Como uma onda, uma avalanche, como uma dor sem fim. E ela sabia que a cura era ele. 

Após perder a conta de quantas vezes ligou e desligou o aparelho, decidiu por fim em deixá-lo mudo, quieto, sobre a mesa. E, envolta no silêncio da noite, abandonou aqueles pensamentos rebeldes e voltou para o quarto. Seu marido estava na mesma posição, como se nem um segundo tivesse passado, e ela adormeceu sob o martelo das horas. As pálpebras ficando pesadas, sucumbindo diante dos primeiros raios de luz que se desenhavam na janela. Em breve acordaria para um dia cheio no trabalho. Precisava dormir.

E ele desapareceu, mais uma vez, na passagem dos seus dias.

* * *

Os anos se passaram. Mais até do que ela gostaria de tomar nota. E eles foram bons para ela, trataram-na bem, com uma gentileza que podia ser percebida na leveza dos seus pensamentos e na preservação da sua beleza. Com pouco mais de quarenta anos ela era uma mulher linda. 

Mas havia aquele algo. Aquele algo sem nome, perdido, que, vez ou outra, vinha mordiscar o seu calcanhar. As decisões não tomadas no passado, as escolhas que talvez tivessem mudado tudo; eles, que um dia chegaram tão perto disso. Eles que chegaram a saborear um grão do que viria a ser o seu futuro juntos. Eles que abriram mão, uma outra vez, daquela decisão tão fácil e aparentemente tão impossível. A de permanecerem juntos de uma vez por todas. Como se outras oportunidades viessem na esquina. Aquele jogo perigoso de brincar com o tempo. Por tempo demais.

O destino pareceu ter perdido a paciência. Eles se equilibravam numa frágil linha de incertezas que eventualmente os afastaram. Voltaram aquele frágil estado do "nos vemos qualquer dia desses", até que passaram a não se ver mais. E, quando menos notaram, a vida voltou a entrar em cena, apresentando novos personagens, novos cenários, novas situações.

O fato é que, inevitavelmente, eles perceberam que os 20, os 30 haviam ficado para trás. Aqueles anos derradeiros, ainda amigáveis às irresponsabilidades. Aquela época em que as vidas ainda podem ser mobilizadas pelo poder da prosa, da poesia, da música, dos filmes. Passados os 40, os dois tiveram que vestir a incredulidade, tornaram-se mais amargos, com aquela noção de que a vida nunca será mesmo do jeito que desejamos, por isso devemos simplesmente nos contentar e seguir em frente. 

O que passou, passou. O que vivemos, vivemos. E o nosso melhor se eterniza, de alguma maneira, na importância da caixa de fotografias e daquelas lembranças mais vivas que começam a enfraquecer na mente. 

Os dois até conseguiam se falar, em raras ocasiões dedicadas quase inteiramente à discussão das efemeridades. O clima, o trânsito, o trabalho, o cansaço. "Bom te ver", "precisamos almoçar um dia desses", "claro, vamos combinar". Seus olhos ainda guardavam um pouco daquela chama de antes, claro; aquela saudade domada, escondida; é o tipo de coisa que não desaparece simplesmente. A chama só não era forte o suficiente para fazê-los ignorar o que havia se tornado irremediável.

Ficou aquela marca. Aquele algo sem nome, habitando suas almas, como uma letra escarlate; que pulsava, vermelha, sempre que os dois se encontravam. Como se para lembrá-los de que eles jamais seriam indiferentes um ao outro e que teriam que se conformar com a ideia de que não seriam comuns. Seriam para sempre aquele não vivido. Seriam aquelas duas pessoas separadas pelo peso dos seus equívocos. 

Então os filhos. Novos endereços. Novos aniversários. Os cabelos cada vez mais prateados e as visitas aos médicos cada vez mais frequentes. Então netos. As imagens mentais desbotando, sendo substituídas pela felicidade sincera da realidade possível. Nunca se esqueceram, é verdade. Mas já não habitavam mais o pensamento um do outro. Pelo menos não com tanta frequência. Algo que vem com o tempo, com a maturidade e com o cérebro cada vez mais hábil em pregar peças. 

No ocaso de sua vida, ele revirou as suas coisas em busca de uma foto. Velha, amassada, com as pontas rasgadas. Ele e ela num restaurante em algum país que ele não se recordava mais. Ela estava linda, os cabelos negros sobre os ombros, os olhos pequeninos, o sorriso discreto para a câmera. Ele, do outro lado da mesa, sorridente, tão feliz em estar ali em sua companhia. 

Tocou o rosto dela na foto com a ponta dos dedos. Um sorriso tímido, um suspiro. A foto novamente depositada entre as suas coisas. A mão levemente trêmula sobre o peito. Dizendo adeus.

***

A xícara se desfez em mil pedaços ao cair no chão. A família se virou para ela, com um susto. "O que aconteceu?", os olhos daquelas pessoas ansiavam. "Não é nada, escorregou das minhas mãos, me desculpem", ela sorriu para sua linda família, aqueles genros, netos, filhos; os olhos pequeninos escondidos sob os óculos embaçados. 

Esperou até que todos voltassem às suas ocupações. Num soluço contido, ela continuou a ler a notícia que a atravessou como um relâmpago, como uma onda. Aquele nome, ali, em destaque nos obituários, como uma piada sem graça. 

Então veio aquele pensamento desconexo. Aquela imagem. Ela lembrou dele, sorrindo, para ela; aquele riso, aquele olhar que durante aquele tempo eterno e breve foi dela e que o destino levou embora. 

Sorriu, os olhos úmidos, um suspiro, um nó na garganta, como quem termina um livro. Só então ela se deu conta que havia chegado ao fim aquela história de desencontros. Procurou uma janela para dizer ao vento: "eu ainda sinto a sua falta", como se ele pudesse ouví-la de algum lugar. 

Depositou os óculos sobre a mesa, guardando, pela última vez, aquele seu segredo. Então uma brisa repentina, impertinente, prenúncio de chuva, que a fez buscar agasalho no calor da sala.

"Eu também, meu amor, eu também".

3 comentários:

Anônimo disse...

Que triste,tristíssima estória esta da separação dos amantes sem ter o amor vivido,deixar o poder ser tornar-se, ''teria sido'', futuro do preterito (futuro do passado) tempo que não tem existencia,tempo perdido desperdiçado.
Que pena.

Anônimo disse...

os caminhos nem sempre levam aos destinos que a gente deseja; que tal prestar mais atencao aos sinais no caminho? vai que aparece um atalho inesperado e surpreendente. aprende a mudar a rota meu caro! é como eu faço.

Paloma disse...

Será que a peregrina strikes again?

...

o autor é ficcionista! hello!