terça-feira, 2 de setembro de 2014

COISA DE CRIANÇA

Entre uma caneca e outra de cerveja, decidimos lembrar dos shows que víamos quando crianças; uma conversa nostálgica, regada a risos garimpados como pedras preciosas. Os desenhos, os programas, as canções inocentes, os seriados que marcavam as nossas tardes. Histórias incríveis com as quais crescemos, por anos.

Então, de repente, como uma onda, eu me senti afundado numa lembrança abrupta. Um programa, que passava todas as tardes, sobre uma bruxa que trocava de cabeça. Lembro de como aquilo era aterrorizante. Aquela mulher estranha, sem rosto, os dedos compridos como garras, caminhando por salões do que parecia ser um castelo decrépito, manipulando todo o tipo de cabeças, para então escolher uma e encaixar no seu corpo, como um manequim. 

E então ela gargalhava, satisfeita.

Aquele pensamento aterrorizante gelou a minha espinha de ponta a ponta. A lembrança daquela mulher monstruosa flutuando pelas sombras, como um fantasma. E, sempre ao final, ela olhava para a tela, os olhos negros, fundos, vazios, dizendo numa voz gutural de que ela viria à noite para buscar a nossa cabeça. Senti cada pelo no corpo arrepiar. 

"Vocês lembram deste show?!", eu perguntei, tentando lembrar mais detalhes. "Vocês lembram qual era o nome?", eu insistia.

"Lembro da bruxa, com certeza", alguém comentou. 
"E as cabeças espalhadas pelo corredor", outra pessoa complementou.
"Meu Deus, era tão assustador", outro intercedeu.
"Como os nossos pais deixavam a gente ver aquilo?!", um finalizou a conversa.

Ficamos em silêncio, a alegria desaparecendo junto com os últimos goles. Pedimos a conta e fomos embora. 

Eu me sentia desolado. Aquela lembrança repentina me acompanhando no trajeto de volta para casa. Corri para o computador, assim que abri a porta, em busca de alguma resposta. Após horas de pesquisa, eu me convenci de que não havia nada na rede sobre aquele programa. Nenhum site, nenhuma foto, nenhum verbete, nada, absolutamente nada sobre a bruxa que trocava de cabeças e nos ameaçava todos os dias. 

Não consegui dormir. Aquelas imagens vindo me devorar, de forma sistemática. A sensação desesperadora de que ela estaria ali, de pé, no quarto me olhando dormir. Sentia o coração a galope no peito e testemunhei cada hora da noite passar, até o dia começar a colorir a janela; e um alívio gradual invadir o meu corpo exausto.

Com uma xícara de café na mão decidi ligar para a minha mãe. Ela se lembraria, eu sei que ela se lembraria. Ela ficava em casa, enquanto o meu pai saia para trabalhar. Ela se lembraria, eu sei.

* * *

Minha mãe ficou em silêncio, do outro lado da linha. 

"Mãe? Mãe, você se lembra?", eu insistia, o café esfriando na mão.

Ela suspirou. 

"Lembro, filho, eu lembro".

Sorri.

"Lembro de você sentado, por horas, diante da TV estática", ela continuou. "Falando sozinho, acenando com a cabeça".

Fiquei em silêncio.

"Você era tão pequeno, eu simplesmente achava que era coisa de criança".

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