quinta-feira, 18 de setembro de 2014

CAMPO DE MARTE


"Então é isso aqui?", a mulher perguntou, em tom de desdém.

"Sim. É isso aqui", o homem respondeu, os olhos cerrados, por conta do sol forte; os braços abertos em cruz, cercados por terra e mato por todos os lados. Aquela paisagem árida, vermelha, marciana.

"Bosta de herança...", a mulher bufou, "vou ficar no carro".

"E o que você sabe, além de cheirar cocaína e vomitar o seu almoço, sua cretina?", ele balbuciou.

"Ahn?", a mulher se virou, no meio do caminho.



"Nada; eu não disse nada".


Mas ele sabia que aquele pedaço de nada era alguma coisa. Uma resposta. Ali ele fundaria um projeto, ele só não sabia o quê. Ficou ali, por longos minutos, ajoelhado na terra, as mãos sujas, sentindo o solo quente sob a palma da sua mão. Um vento inocente ameaçava, sem muito sucesso, mexer no seu cabelo. Fazia muito calor, mas ele queria ficar ali, sobre a herança deixada pelo seu pai. 

Aquele monte de nada. 

Ele se sentia tão cansado de tudo aquilo; uma vontade sufocante de romper com aquela vida. Recomeçar do zero, como semente plantada no chão, aquela metáfora viva cozinhando os seus pés. Olhou ao redor. Nada. Vazio. Silêncio. Um grupo de pássaros não muito longe, algumas nuvens tímidas no céu. E ele, ali, parado, contemplando aquele cenário sem poesia; olhando a sua mulher dentro do carro ligado, o celular na mão, olhando-se espelho, aquela cara de nojo constante. 

"Deus, meu Deus, como eu odeio esta mulher", pensou com seus botões.

Então sentiu-se iluminado. Como se uma presença tivesse invadido o seu corpo e tomado-o de assalto, de forma fulminante. Caminhou em direção ao carro, a passos lentos, a sua mulher observando-o com alguma incerteza. Ele sentia o seu coração galopando em seu peito, como se fosse rasgar a roupa. Abriu a porta com alguma violência, e imediatamente lembrou daqueles filmes do Superman, quando ele arrancava as portas dos carros, tamanha a sua força descomunal. Não foi o que aconteceu, claro, mas mesmo assim. Foi sua imagem mental naquele momento embriagado por adrenalina. 

A mulher ficou imóvel, sem entender nada, ensaiando uma resposta desaforada. Em vão.

* * *

O sol já começava a se pôr, enquanto ele sentia a camisa empapuçada de suor, grudando no corpo. As mãos em carne viva, apalpando a terra mexida daquela cova rasa. Ajoelhado, coberto de sangue e sujeira, o cabelo pingando, espalhado na testa, as unhas encardidas, cada músculo do corpo dolorido, ele estava ali, arfando, sentindo o vento do campo engasgá-lo enquanto ele tentava respirar. 

Estava feito. Enfim, estava feito.

"Veja, veja!", ele exclamou, apontando em direção à terra mexida, "a minha bosta de herança!".

Gargalhou, histericamente, enxugando o rosto coberto de lágrimas, transe e catarse. E então caminhou em direção ao carro. Sentou-se, deu partida, escancarou as janelas, seguindo em velocidade, inebriado pela canção tocando no volume máximo.

Até desaparecer no horizonte.

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