- "Eu não queria te acordar, eu sei que é cedo, mas é que eu não tinha ninguém mais para ligar..."
* * *
O assoalho da casa ainda fervia sob os seus pés descalços; o suficiente para machucar, mas ele caminhava, alheio à dor, sobre os escombros da velha casa de praia que havia pertencido aos seus avós. O resto dos móveis, ainda fumegando, madeiras e tijolos expostos, negros, pedaços de cortinas dançando no vento como bandeiras arrasadas num campo de batalha, tendo o mar emoldurando aquela cena de caos. Infinito, assustador, gigantesco e indiferente.
As ondas quebrando na areia, para frente e para trás, para frente e para trás.
Era possível ver pedaços de coisas, aqui e ali, mas não havia restado nada inteiro, que pudesse contar alguma história. Retratos queimados, roupas, objetos de valor e sem valor algum, objetos de arte completamente modificados, um aglomerado de coisas sem forma, como um buraco no tempo e espaço, de destruição compacta.
Seus pés doíam, os dedos lascados por pedaços de vidro e madeira, a barra da calça de pijama já levemente chamuscada, o rosto marcado por fuligem e sombra, como um guerrilheiro camuflado, os olhos petrificados, as mãos penduradas como cordões mortos, o ar salino, curto, suficiente para mantê-lo de pé, o seu corpo guiado pela incredulidade.
E então lá estava ela, sua mulher, o que havia restado dela, sobre os escombros, os restos de pele, osso e pano unidos com o caos, numa amálgama que desenhava o fim, o terrível fim, o seu fim. Ele ficou ali, de pé, observando os restos mortais da mulher que, horas antes, estava sentada na areia, os olhos fixos no mar, questionando-se sobre o sexo dos peixes. Aquela mulher infeliz, que viera habitar o mundo dos vivos por uma triste casualidade, e que há tanto tempo se esforçava em ir embora.
E levar tudo consigo, como uma bomba.
Ele acocorou-se e sentiu o cheiro forte de coisa queimada sufocando o seu rosto. Não havia mais nada ali, não havia mais forma, apenas restos, misturados; o que era casa, o que era areia, o que era mulher? Não sabia dizer. Encostou a ponta dos dedos, sentindo a superfície ainda quente, as unhas enegrecendo com a sujeira.
Adeus.
Quando os bombeiros, a polícia, e todo o circo de vizinhos e autoridades se formou em torno da casa destruída, encontraram o homem sentado, sereno, sobre uma cadeira sobrevivente, no que um dia fora uma varanda.
Sentiu mãos em torno do seu corpo, rosto, paramédicos agasalhando-o com um lençol térmico, máscara de oxigênio, luzes e sirenes. Perguntas, tantas perguntas.
Caminhou com os bombeiros para uma ambulância estacionada na grama e sentou-se numa maca. Luzes nos seus olhos, dedos em suas pálpebras, pulso, pescoço. Toques, olhares, perguntas, perguntas, tantas perguntas.
"O que você está sentindo?", o paramédico perguntou, ainda examinando o seu corpo.
"Alívio".
Ficou em silêncio.
Então viu o carro, cortando o horizonte em velocidade, a mulher deixando o veículo as pressas, a porta aberta, o motor ligado. Ela correu para a ambulância, onde o encontrou deitado, levemente entorpecido. Abraçaram-se.
Um pranto silencioso, um beijo delicado.
"Obrigado por ter vindo", ele conseguiu sussurrar. "Obrigado".
Era hora de construir sobre os escombros da casa de areia.
Era hora de construir sobre os escombros da casa de areia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário