sexta-feira, 2 de maio de 2014

AMARELO


A cortina dançava preguiçosamente contra a janela, enquanto a luz do começo do dia cobria o quarto bagunçado numa atmosfera de entorpecimento. E os dois estavam ali, nus, sobre o emaranhado de lençóis. Ele, inquieto, custava a manter os olhos fechados. Ela era o oposto, ali, mergulhada num sono profundo e respiração leve. O cabelo dela, amarelo, espalhado pelo travesseiro. Amarelo como gema de ovo. Aquele cabelo estranho.

Apoiou a cabeça sobre o cotovelo e ficou desenhando o seu corpo com os olhos. A luz refletida nos pelos curtos e transparentes ao redor do seu umbigo. As pernas compridas e firmes, sobrepostas como as de uma leoa, os braços finos entrelaçados sob o seu rosto. Os sinais, as marcas, o pêlo, a pele. 

Pensou em correr os dedos levemente sobre as suas costas. Hesitou. Não queria acordá-la.

Caminhou pelo quarto, buscando pedaços de roupa espalhados pelo chão. A janela do seu quarto de hotel comunicava uma solidão esquisita. Tocou o vidro, com delicadeza, apoiando a sua testa no cartão postal escancarado diante dos seus olhos e decidiu que caminharia, sem mapa, sem roteiro. Olhou para a mulher, na cama, por alguns instantes antes de fechar a porta.

Ela continuava ali, adormecida, o longo cabelo amarelo espalhado sobre o travesseiro.

Curioso como algumas cidades provocam marcas, cicatrizes mentais, chame do que quiser, frutos dos eventos vividos em suas ruas, becos e avenidas.

Esse pensamento vinha martelar a sua cabeça, como um mantra, enquanto ele bebia o seu café sem pressa; o vapor inebriante invadindo as suas narinas, as pessoas e carros passando por perto, cheios de barulhos e de caos, e ele sentia vontade de fechar os olhos por alguns instantes enquanto sentia o líquido quente e saboroso escorrer por dentro do seu corpo.

No fim das contas, claro, tudo se resumia a ela. Voltar naquela cidade, depois de todo aquele tempo, trazia consigo uma sensação esquizofrênica de que ele a veria ali, como se ele pudesse contemplar, feito viajante do tempo, as imagens trancadas dentro da sua mente. Como se ele pudesse ver a si mesmo, melhor, ver os dois juntos, caminhando por ali; testemunha de algo vivido e tão mal esquecido.

Mas eles não estavam ali. E o pensamento voava com o vento que levava as folhas órfãs de jornal.

Sorria. Havia algo amargo naquele sorriso, ele sabia, mas de que importava?

Feito um detetive, decidiu traçar os passos, como os lembrava, visitando os mesmos lugares, redesenhando os eventos conforme eles estavam estampados em sua memória. E sentia-se visitado por uma miríade de sensações que o transportavam para aquela cidade, como se ele não estivesse ali. Sentia-se flutuante, cercado por cheiros e sabores que emulavam os acontecimentos de forma artificial e eficaz.

Tocava as paredes, feito peregrino.
O céu azul, emoldurando as imagens mentais.
Aquela cidade era tão competente. 

"Você nunca me deixará esquecer", ele sentia vontade de gritar aos monumentos.

Respirou fundo, de repente inseguro sobre aquela errância. Lembrou da mulher, adormecida, no seu quarto de hotel e sentiu falta dela; de estar com ela. Por alguma razão, repentinamente, sentiu falta dela; daquele cabelo amarelo e de tudo o que ela fazia de diferente - e errado - "que se dane!". Decidiu retornar; comprou flores, pães, café e chocolates para acordá-la. Caminhando, a passos largos, o hotel demorava a se desenhar no horizonte.

Encontou-a sentada na cama, o corpo envolvido no lençol como um vestido costurado preguiçosamente. Ela tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado.

"Eu posso deixar o meu cabelo escuro, se você quiser... como o dela", disse quase engasgando.

Aquela frase atravessou o seu peito como uma lança; abraçou o seu corpo delicado e beijou a sua boca como se fosse a primeir a vez. E percebeu, ali, naquele quarto sem nome, o quanto ele amava aquela mulher frágil, estranha e linda. 

E o seu cabelo. 
Amarelo.

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