quarta-feira, 5 de setembro de 2012

SILÊNCIO ENTRE OS OLHOS

Havia dias, aquelas vozes não calavam em sua cabeça. Os gemidos, os sussurros, os risos, os gritos. Era despertado com sustos, durante a madrugada. Virava a cabeça, ao atravessar a rua, em busca de quem o havia chamado, olhava em todas as direções, para entender de onde vinham aquelas palavras confusas, todas aprisionadas entre os seus olhos.
 
Em instantes breves, brevíssimos, as vozes calavam. Mas, como uma tortura planejada, voltavam antes mesmo que ele pudesse agradecer, em preces mudas, pelo silêncio. Sustos, gargalhadas, vozes que se sobrepunham, se atrapalhavam, como num idioma indecifrável. Ele chorava, em desespero, exausto, enlouquecendo. A cada hora. Cada vez mais.
 
Foi uma questão de semanas para que abandonasse, um a um, os projetos que mobilizavam a sua vida. Primeiro o trabalho, que o afastou sob licença médica. Depois sua namorada. Então sua família. Seus amigos. Seus hobbies. Começaram, rapidamente, as reclamações dos vizinhos, incomodados com o barulho ensurdecedor da televisão, aparelhos diversos e da música em seu pequeno apartamento. Ele simplesmente não sabia mais o que fazer e o barulho dos eletrodomésticos pareciam funcionar de forma paliativa.
 
As vozes surgiram de forma abrupta, inesperada. Numa madrugada qualquer, ele acordou com um grito. Com o coração em galope aflito, saltou da cama e correu para a janela. Depois para o corredor. Até perceber que aquele grito só estava alojado dentro da sua mente. O resto, a cidade, o apartamento, os vizinhos, estavam todos embebidos em profundo silêncio.
 
Falava. Falava alto. Consigo, de forma deconexa, caótica, confusa. Como se pudesse desviar sua própria atenção. Propunha temas sem lógica, frases sem ordem, histórias sem fim. Comentava sobre partidas de futebol e notícias do jornal. Misturava personagens de livros, filmes e desenhos animados. Imitava as vozes, relembrava fatos sem nexo cronológico. Comentava a meteorologia, o calor, o frio. Elogiava as flores e mulheres. Ria de forma esquizofrênica, com os olhos embaçados por lágrimas constantes.

Já não dormia mais.
 
Então começou a estapear o próprio rosto. Primeiro com golpes leves, com as mãos espalmadas ao redor da cabeça, como alguém que parece querer se manter acordado. Rapidamente, trocou as palmas por punhos fechados. Então passou a escolher objetos ou arremessava sua cabeça contra a parede. Feito um touro cego.

E em vão.
 
Um dia, em que o desespero calou por fim sua sanidade, buscou uma caixa de ferramentas de onde sacou um martelo. Velho, sujo e enferrujado, ele contemplava o objeto com mistura de medo e fascínio. Então um golpe, seco, rápido.

Ele observou o furo criado na parede. O gesso e o concreto fragmentados feito gelo ao redor de uma depressão do tamanho de uma moeda. Golpes seguidos sucessivos, em fúria, num balé colérico em que o martelo não poderia deixar nada em pé, nada inteiro. Via a casa ruir diante dos seus olhos, a mão e os dedos já em carne viva pelo excesso e a violência dos seus movimentos. Ao redor do seu corpo, um apartamento em ruínas, envolto numa tempestade de poeira, pano, vidro, gesso e madeira.
 
Arfava. De forma pesada. Como um animal.
 
O sol desenhava uma linha discreta, que cortava o apartamento de ponta a ponta, numa chuva de fragmentos que flutuavam ao longo do feixe amarelo, como uma constelação. E então as vozes. De volta, um coro de um milhão de pessoas, sufocadas dentro de sua cabeça, numa explosão de palavras que ele já nem tentava mais compreender.
 
Largou o martelo no chão num estrondo seco. Chorava, soluçava, com as mãos sobre o rosto, a roupa colada no corpo de suor e sujeira.

Então viu no chão um longo prego, comprido como uma agulha de costura. E entendeu, afinal, o que precisava fazer. Como ter de volta o silêncio entre os seus olhos.

Ajoelhou-se vagarosamente, o rosto úmido e vermelho de lágrimas e suor. Apanhou martelo e prego com mãos e lábios trêmulos, empunhando-os como artefatos cerimoniais.

Fechou os olhos, a ponta fria do prego roçando perigosamente o seu ouvido.
 
E calou, por fim, aquelas vozes.

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