quarta-feira, 19 de setembro de 2012

PASSAGEIRA


Não é que ele não sentisse saudade dela. Ele sentia. É que ele havia se acostumado com o embaralhamento daquelas peças, daquelas cartas, daquele jogo que por fim ele havia entendido não ter uma solução. Um quebra-cabeças, um coração quebrado. Seguindo em frente.

Mas ela voltava de forma repentina, inesperada. Meio estrela cadente. Como se habitasse seu corpo, vinha em forma de lembrança desconexa, na montaria de um perfume anônimo, um cabelo, um vestido. Uma cena de filme, uma passagem de livro. Ela se manifestava nas entrelinhas, como lhe era contumaz, e então desaparecia feito mágica. 

E ele gostava disso. Desta estranha presença. Melhor, desta ausência agridoce, definitiva. Afinal, havia ficado muito claro [ou não havia?] que aquele tempo de inocências havia chegado ao fim. Aquela história narrada às pressas, a quatro mãos, a quatro pés, a duas bocas. 

Aquela história de silêncios e segredos, com coisa de sonho, de cheiro, de suor, riso, lágrima, mágoa. Coisa antiga. E com cheiro de tinta fresca. Aquele caleidoscópio de emoções e memórias que se entrelaçavam numa tapeçaria de ideias em que já não era tão claro o que havia sido verdade, o que era invenção, o que só era desejo. O que havia ficado, o que havia se perdido.

Ele gostava de tatear seu corpo em pensamentos que, a cada dia, perdiam o tom. Lembranças cada vez mais desbotadas, perdendo músculo, deixando de revirar borboletas de abdômem. Transformando-se em risos tímidos, destes que se manifestam na janela, provocados por um pôr-do-sol, por chuva, por música suave ao ouvido. As memórias que já não tinham mais tanta força para voltarem a superfície por conta própria. 

Aquelas lembranças fracas, submersas, submarinas.

Mas ele ainda sentia o cheiro da sua pele, o gosto do seu corpo, o suor das suas curvas temperando a sua língua. A voz sussurrando bobagens, as promessas que não se cumprem, a coleção de não ditos, não feitos, não vividos. 

Em madrugadas mais inspiradas, ele quase sentia o toque gentil das suas mãos em seu rosto, seu cabelo. Um carinho que o fazia despertar e desaparecia na penumbra, apagado sob o véu da realidade. E então apenas o silêncio. E as luzes da cidade salpicadas em janelas insones.

Mas era como se ela estivesse ainda ali e, com algum esforço, podia desenhar aquela silhueta ao seu lado na cama. Tocaria as suas costas nuas, despertaria seu corpo, como no tempo em que tudo parecia durar para sempre. 

Talvez fosse tristeza. Talvez fossem os cabelos prateando. O rosto, desenhado por ruas e avenidas ainda não batizadas. Talvez fosse culpa daquele mês febril. 

Os dois deram uma volta ao mundo, juntos. Um mundo, uma esquina. Possuíram uma ilha, hoje desabitada, flutuante, à deriva, em algum canto perdido, sem mapa, sem um caminho de volta. 

Só sobrou a saudade. Fugaz. Fugidia. Coisa de tempo, de vento. E que passa. 

Passageira.

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