sábado, 26 de fevereiro de 2011

O HIEROFANTE

Enfim havia chegado o dia que ele tanto temia. Lutara, todos aqueles anos, contra a sua própria natureza, sua moral, seu orgulho. Por amor, fingiu acreditar em todas as mentiras e meias verdades. Agia, atuava, todos os dias, como se não soubesse de nenhum dos pecados de sua mulher. E aquilo o corroía por dentro e ele sabia que acabaria por matá-lo, muito cedo, como veneno.

Por amor, ele pensava, conseguia tolerar aquela teia de traições e fingimentos. Amor por ela, claro, seu amor de infância. Amor pela estabilidade, pelos filhos meio criados. Amor ou medo, ele já não sabia. Medo de se ver só, errante, sem saber o que fazer da outra metade de vida que ainda o restava. Mais medo, chegou a conclusão. E quando se deu conta disso, que apenas o medo, e não mais que isso, era o fio que o mantinha preso aquela realidade foi que decidiu enfrentar o seu temido ponto de mutação.

Ela era uma mulher adúltera, ele sabia. Sabia de tudo, desde o princípio. Das pequenas traições, fugazes e quase inocentes, a todas as suas escapadas e aventuras. Sabia de cor as suas desculpas, já havia decorado aquelas falas falsas que ela inventava para encobertar suas falhas e rabos soltos no caminho. Porque ela não fazia nenhuma questão de cometer o crime perfeito. Longe disso. Deixava pistas e rastros tão fáceis que até chegavam a ofendê-lo. Era como se ela quisesse ser descoberta. E quando ele ameaçava brincar de detetive, algo que a deixava extremamente desconfortável, ela tergiversava e ele fingia, como sempre, acreditar.

Mas ele sempre soube de tudo, como se lesse um livro de onde apenas faltam algumas páginas. Porque ela era, simplesmente, tão óbvia. Ele nem chegava a se consumir pela fúria, puramente. Muitas vezes, sentia nojo, desprezo, às vezes pena. Era tão ridículo todo aquele fingimento que ele sentia vergonha. Ela não, claro. Ela não fazia a menor ideia de que ele sabia de tudo. Para ela, estava tudo bem, ele continuava ignorante. Para ele, o contrário. Era como se estivesse estampado em sua testa e agir como se ele não soubesse de nada era tão patético que ele tinha dificuldade em olhá-la nos olhos.

Como ela conseguia? Isso era para ele o maior mistério. Como ela conseguia viver com a culpa, se é que a sentia? Como ela podia agir daquela forma, ter cometido tantos erros, a um homem tão bom, que sempre esteve ao seu lado, irrepreensível como um sacerdote? Ele coçava a cabeça todas as vezes que se pegava pensando. Olhava-a pelos cantos de espelho e sorria, para si mesmo, como quem arma uma armadilha. Como um policial competente que faz o bandido acreditar que tudo está sob controle até pegá-lo definitivamente.

E ela não iria fugir mais. Tudo estava decidido. Ele iria matá-la naquela noite. Um plano perfeito. Seu plano perfeito. Tinha todos os passos desenhados com rigor em sua mente atribulada de engenheiro elétrico caçoado pelos colegas de trabalho.

Tudo iria começar com um drink. Como ela gostava. Esperou-a chegar do trabalho, como um assassino, camuflado sob as sombras que se desenhavam na sala. Acendeu um punhado de velas para surpreendê-la, mais uma vez, como o idiota romântico que sempre havia sido. E assim que ela desse o primeiro gole ele despejaria sobre ela aquelas três toneladas de segredos que ele sabia, para desmascará-la de uma vez por todas, e assassiná-la com a certeza de que ela morreu ciente de que ele riu por último. O castigo das adúlteras, pensava. Sentia-se bíblico naquele dia. 

Mas ele não fazia ideia, nem por um segundo, que no meio dos seus planos sem fim era ela quem vinha até o apartamento para assassiná-lo. E assim o fez, com uma pequena arma de bolsa, um tiro certeiro, que rasgou o seu coração. Por fim, era ela quem destruía o seu coração. Uma última ironia. 

Tombou, em câmera lenta, vendo o apartamento girar ao redor de sua cabeça. Do chão, ele sentiu o carpete acariciar o seu rosto. Gostava daquele carinho e, só então, percebeu como havia esquecido de um toque estrangeiro sobre o seu rosto. Observou-a de baixo, terminar o seu drink enquanto falava ao celular. Pelo que ele podia ainda escutar, "tudo estava resolvido".

E ele sorriu. Porque seria dele o riso final. E, assim, quando a taça despencou das mãos dela, arrebentando-se em dezenas de pedaços, ele soube que havia acertado na dose de veneno. 

Sim, tudo estava resolvido.

Um comentário:

ione gonzález disse...

Lindo texto dark ,solitário.Lembrou-me a frase famosa de Nelson Rodrigues
(outro autor que gosto além de voce)que diz :''Toda mulher gosta de apanhar"..causou polêmica..a Freud não causaria;já que afirma que toda mulher é masoquista.Sinto que ele não deu fim nela antes.Procrastinar a la Hamlet geralmente termina em tragédia.