quarta-feira, 4 de agosto de 2010

CAFÉ PARA ALICE

Estavam exaustos. Haviam feito amor por toda a noite e já tinham perdido a noção do tempo. Ouviam a respiração silenciosa um do outro enquanto entrelaçavam dedos carentes e pés curiosos. Fazia calor e o teto do quarto parecia ganhar contornos especiais, com as sombras que começavam a se desfazer, feito nuvens num céu de mentira. Sobre os lençois, completamente desfeitos, os dois observavam o sol surgir preguiçosamente na janela. Raios irregulares de luz cortando o quarto como uma cama de gato.

Ele gostava de ver a luz contornando o lindo corpo de Alice, como uma cordilheira no horizonte. Ela estava de costas para ele, completamente nua, os cabelos avermelhados soltos sobre o travesseiro. E os olhos dele pontuavam, como cartógrafos, o brilho que gradativamente percorria seu pescoço, ombros, costas, cintura, nádegas, pernas, pés. Aquele corpo que ele buscava com avidez e que conhecia tão bem; cada esquina, cada rua e reentrância.

Esticou o braço direito como se apontasse para uma direção e tocou, com a ponta dos dedos, a tatuagem que Alice ostentava na base das costas. Um símbolo do zodíaco que ele nunca conseguia lembrar ao certo o significado. Mas não fazia diferença. Ele adorava aquela tatuagem, adorava beijar aquela tatuagem, e acariciava o pequeno desenho como se o refizesse por cima do original, observando os pêlos de Alice se manifestarem como grama alta no vento. De olhos fechados, o rosto completamente banhado na luz matutina, Alice agradecia os carinhos em silêncio.

Os dois se amavam e se conheciam há tanto tempo que já nem sabiam ao certo a contagem precisa dos anos. Mas eram muitos. Eles eram jovens, eram sós e tinham naquela cumplicidade misteriosa, naquela amizade de corpos e almas, um compromisso.

Mas havia duas coisas que eles não sabiam. A primeira era que Alice estava grávida. A segunda, é que ele iria embora naquela manhã.

Um cigarro aceso pendia desleixadamente da mão dele. A fumaça, cinza azulada, subia pelo seu rosto criando novos ares para as suas ideias confusas. Suas ideias desesperadas de fuga. Ele amava Alice profundamente, mas não conseguia mais suportar a ideia de pertencer a alguém. De alma livre, forasteira, ele queria fugir. E havia feito isso desde quando conseguia se lembrar. Ele fugia de todas as amarras, de todos os laços. Assim foi com a escola, com trabalhos prolongados, com a sua mãe e seus irmãos. Ele não criava raízes. Não por maldade, talvez por fraqueza. O fato é que ele era um fugitivo.

Alice havia adormecido. Cobriu o corpo e se encolheu de um lado da cama. Era assim que ela dormia, ele sabia. Olhou-a por alguns segundos, com uma mistura de raiva, dor e paixão, enquanto abotoava a camisa amassada. Enxugou uma lágrima solitária e se confortou com um pensamento rarefeito de que "assim é que são as coisas". Sem perguntas, sem respostas, somente o movimento. Seria melhor não para ele, mas, principalmente, para ela. "Alice merece tanto mais".

Calçou os sapatos e caminhou vagarosamente para a porta, de onde olhou para ela por mais alguns instantes. Guardaria para sempre aquela mulher inesquecível. Aquela menina, grande demais para o mundo, que possuia respostas para todas as perguntas e abraçava a vida como uma criança. Alice o ensinara a viver quando ele já havia desistido de tentar novamente. Nunca a havia amado tanto como naquele momento. Mas ele era um covarde e preferiu atender ao seu chamado original de ir embora, mesmo sem sequer saber para onde.

Fechou a porta com cuidado para não acordá-la. Preferiu as escadas ao elevador. Na calçada, fez um aceno breve para um táxi, que parou metros adiante. Caminhou, sem olhar para trás, até parar ao lado do carro branco e azul. O motorista o observava, com um misto de dúvida e impaciência, mas ele se recusava a entrar. Desculpou-se e fechou a porta, vendo o carro partir em velocidade. Sorriu e atravessou a rua, para onde um homem corpulento e simpático abria uma padaria.

Subiu correndo as escadas, que rangiam sob os seus pés afoitos como se uma multidão aplaudisse aquela curta maratona. E abriu a porta do quarto com pressa, encontrando Alice de pé, à janela. Ela sorriu melancolicamente e os dois parlamentaram em silêncio por não mais que três segundos. Era tudo tão simples, afinal de contas. Alice era a exceção.

"Achei que você tivesse ido embora".

"Achei que você gostaria de pães e café".

Viveriam juntos, até o final de suas vidas.

2 comentários:

LILIAN disse...

ESTE BLOG ESTÁ SE APRIMORANDO A CADA DIA.
qUE TEXTO TÃO SUTIL ,DELICADO E COMOVENTE.
FORMIDÁVEL A FOTOGRAFIA DO LEÃO E O POST DA MAYSA.
LINDA CAIXA DE SURPRESAS.
PARABENS.

Rachel GM disse...

A descoberta de seu blog hoje, em plena quarta-feira fria e nublada, encheu meu dia (soa pretensioso, já que ainda são 11 da manhã, eu sei) com beleza e poesia. Obrigada.