Mesmo muito doente, meu avô não abriu mão de fazer algo que, desde sempre, eu o via fazer: ir todos os dias, ao final da tarde, à livraria Perdidos Prazeres, que ficava a uma quadra da sua casa. Minha vó contava que ele visitava aquela livraria desde os anos 40, quando ainda estudava Direito. E até a véspera da sua morte ele visitou a livraria, onde ficava das cinco da tarde até as sete da noite. Sempre. Ía sozinho, em silêncio e se despedia da minha vó, com um carinhoso beijo na testa. Todos os dias.
Minha vó o via se levantar, pegar o paletó e se ajeitar diante do espelho. Ela sorria, disfarçando uma melancólica conformação. Era o que ele gostava de fazer, todos os dias, desde quando se casaram. Após quase 60 anos, não havia mais do que reclamar. Era seu raro, seu único prazer. Ele estava doente e ela apenas dizia para ele tomar cuidado.
Às sete e meia, quando chegava em casa, entrava sorrindo e, nas tardes em que eu passava com a minha vó (mesmo já adolescente), meu avô trazia em mãos pães doces que comíamos com café. Acho que ele era chegado às rotinas. Mas eu nunca entendia ao certo o que meu avô tanto procurava naquela livraria. "Perdidos Prazeres". Ele não me parecia muito apreciador de literatura e, na verdade, entre os poucos livros da casa havia, em grande parte, velhos livros de Direito e alguns de poesia, de minha vó.
Tampouco ele falava em literatura. Quando tento me recordar, acredito que em nenhum momento de minha vida conversei com meu avô sobre livros. Ele tinha outros prazeres. Gostava de cartas, de música e de partidas de futebol. Gostava de pescar com o meu pai e de festas de casamento. Adorava conhecer os namorados das minhas tias e de brincar com os três gatos da casa. Mas não livros. Pelo menos, não que eu me lembre. Mas ninguém se permitia questionar isso. "É o que as pessoas velhas fazem", minha mãe me explicava quando eu era criança. Meu avô gostava de ir à livraria e ninguém questionava.
Na madrugada em que ele morreu, em casa, sereno e sem sofrimento, minha mãe me acordou à meia-noite. "Vovô morreu". Eu tinha 16 anos na época e lembro de chorar, profunda e copiosamente, exatamente três anos depois desse dia. Estava no primeiro ano de faculdade e visitei minha vó, como fazia quase todas as semanas. Encontrei-a remexendo caixas, gavetas e armários. Ela estava separando dezenas de objetos e roupas do meu avô para serem doados e me perguntou se eu gostaria de ficar com algo.
Abri o enorme armário de jacarandá - em que eu gostava de me esconder quando era criança - e vi uma coleção de ternos bonitos, bem cortados, destes que jamais ficam fora de moda. "Porque não fica com um?", minha vó interrompeu meus pensamentos. "Acho que ele iria gostar". Passei a mão, carinhosamente, pelos ombros dos paletós, como se me permitisse um último, um atrasado carinho nos ombros do meu avô. E nem percebi quando meus olhos transbordavam em lágrimas que eu não sabia explicar de onde viam. Percebi, apenas naquele momento, o quanto eu amava meu avô e quanta saudade eu sentia. Mas, principalmente, o quão pouco foi o tempo que passamos juntos. Três anos depois. Minha vó me abraçou, com delicadeza, e até hoje lembro do cheiro de lavanda da sua roupa que amparava os meus soluços inesperados naquele dia.
Escolhi um paletó azul marinho, solitário, já sem a calça. Apenas uma jaqueta muito surrada mas com tanto charme que bem poderia ser vendida numa loja sofisticada ao preço do resgate de um rei. Minha vó sorriu, passou a mão no peito do paletó. Parecia saudosa e me explicou que aquele havia sido o primeiro paletó do meu avô, justamente o único que ele tinha quando era jovem. Ele o havia vestido por todos os anos da faculdade, já que não possuia meios na época para ter mais de um. Minha vó queria lavá-lo, mas eu não aceitei. Vesti-o imediatamente e senti naquela roupa velha o abraço final que não havia dado em meu avô. Senti um conforto imenso, de despedida e fui embora.
No caminho, instintivamente, mexi nos bolsos e nada encontrei. A não ser por um cartão de visitas, tão velho e amarelado, que parecia se desfazer em minhas mãos. Nele, um endereço extremamente familiar, e um nome em letras garrafais, numa grafia que exalava coisa antiga: "Perdidos Prazeres". Ao fundo, apenas um nome, quase desenhado numa linda caligrafia feminina: Amália. Parei alguns instantes, intrigado com aquele pequenino mistério. Quem era Amália? E que motivo havia feito meu avô guardar aquele cartão, intocado, dentro de um paletó mais velho até que o meu pai?
De repente, senti uma chuva de pensamentos me cobrindo as ideias, como uma onda revolta. Corri, a passos largos, para a notória livraria do meu avô e parei sob a entrada, como um peregrino: "Perdidos Prazeres". Caminhei lentamente, ouvindo um tilintar atrás de mim, destes que denunciam a entrada de um novo cliente.
Não havia ninguém por perto e percebi que era a primeira vez que eu entrava naquele lugar. A livraria era um espaço interessante, antigo, como estas livrarias que vemos nos filmes, com longas prateleiras de madeira e livros do chão ao teto, como um sebo. Havia aquele cheiro de papel, plástico e madeira no ar. Poltronas e tapetes espalhados criavam uma atmosfera aconchegante e, se vivêssemos numa cidade fria, o centro da livraria poderia ser adornado com uma lareira. Mas não era o caso. Foi quando notei o quanto eu estava suando.
"Porque você não tira o casaco, meu filho?", ouvi uma voz doce ao meu lado. Uma senhora de bochechas rosadas e cabelos grisalhos encaracolados me abordou. Havia um brilho em seus olhos e era como se eu a conhecesse. Ela sorria, esperando meu consentimento. Tirei o casaco e entreguei em suas mãos. Ela dobrou com cuidado e descansou o paletó do meu avô sobre uma cadeira.
"A senhora, por acaso, se chama Amália?, perguntei. Ao que ela consentiu, com certa curiosidade. Abracei-a, com muito carinho, e notei que ela retribuiu meu abraço. "Ele a amou por toda a vida, até o último dia", sussurrei. Ela não parecia entender aquela estranha situação e deve ter me julgado como louco, mas disfarçou bem. Quando me preparava para ir, lembrei que havia esquecido o paletó na livraria, mas rapidamente percebi que assim é que deveria ser. Olhei uma última vez para o letreiro e acenei para a senhora, que acenou de volta, por detrás do vidro polido e marcado por longas letras douradas. "Perdidos Prazeres".
Quando voltei meu olhar para a rua, acabei esbarrando numa moça que caiu no chão com o trombo. Ela tinha cabelos vermelhos, compridos, e sorriu do chão quando eu prontamente fui em sua ajuda. Olhamos um ao outro nos olhos por não mais que dois segundos. Ainda segurava sua mão quando ela me deu a entender que precisava entrar. "Você trabalha na livraria?", perguntei. "Não, apenas ajudo a minha vó às quartas-feiras. Ela é a dona, aquela senhorinha ali", disse, ainda sorrindo e apontando para o vidro. "Posso te ver mais tarde?". "Pode. Pode, sim".
E, entre os meus mistérios flutuantes, eu tive todas as certezas que poderia ter na vida.
"Casarei com esta mulher".