quarta-feira, 24 de março de 2010

TRISTE BORBOLETA

Acordou naquela manhã com uma ideia fixa na cabeça: “preciso me livrar desta angústia que quer me matar”. Sentia-se feia e disforme. Acreditava, dia após dia, que era uma mulher sem graça. Apalpava a pele flácida na esperança de que algum milagre pudesse ter acontecido enquanto dormia e passava a mão pelos cabelos desgrenhados em decepção. Todas as manhãs. Não gostava mais de si. Achava-se uma mulher feia. Sentia-se uma mulher feia.

Ninguém conseguia explicar o seu comportamento. De uma hora para outra, era como se tivesse enlouquecido. Tudo era muito estranho, quase surreal. Num domingo qualquer passou a se vestir daquela forma, com o rosto maquiado como uma pintura abstrata. Raspou a cabeça, as sobrancelhas e todos os pêlos restantes do corpo. Sentia-se uma mulher torta, uma mulher quebrada. Sentia-se como a cria de um quadro de Dalí com um desenho de Picasso.

Eventualmente, todos começaram a se afastar. Por medo, asco, vergonha, estranheza. Ninguém conseguia explicar o que havia acontecido a Joachim para ele agir daquela forma. Nunca havia feito nada errado. Havia sido sempre um menino correto, bem comportado. Terceiro filho de uma família de judeus ortodoxos, nunca deu problemas nem durante a adolescência. Havia se transformado num homem silencioso, é verdade, e notoriamente solitário. Tinha suas excentricidades, mas não incomodava ninguém em sua solidão de jovem velho ermitão de trinta e oito anos.

Morava nos fundos da casa de seus pais. Trabalhava na garagem, o dia inteiro, mexendo em motores velhos e eletrodomésticos condenados. Tinha mais dois irmãos, que moravam em Tel-Aviv servindo ao exército e uma irmã morta num terrível acidente de barco. Era uma família estranha, mas que não demonstrava suas estranhezas a ninguém. Eram extremamente reservados, até. E talvez por isso o menino Joachim tenha sido uma criança isolada. Mas isso não era justificativa. Não para o que estava acontecendo com ele.

E assim continuou, por meses. Perambulava pelas ruas como um louco. Escondendo-se nas sombras das esquinas, com medo de si mesmo, parecendo estar em busca de um destino sequer conhecido por ele. Foi quando se deparou com um cartaz de um salão de beleza maltrapilho, no centro de cidade: “Você é uma mulher linda, não importa o que eles digam”. Olhou fixamente para a placa desbotada, quase em transe religioso. E teve uma epifania.

Correu para dentro e se trancou no banheiro, assustando uma meia dúzia de mulheres tristes que estavam ali, cuidando umas das outras. Assustadas, ouviram o som de um touro numa loja de cristais. Era como se alguém tivesse aberto os portões do inferno, dentro do pequeno banheiro. Ouviam o rapaz urrar com ira, êxtase, dor, cólera. E o escutavam se debater e quebrar o que tivesse ao seu alcance. Sentiram medo e chamaram a polícia.

Joachim se observou perplexo, por horas nos restos de espelho caídos no chão do banheiro. Narciso às avessas, tinha uma confusa atração pelo seu reflexo, que, ao mesmo tempo, parecia odiar visceralmente. Queria se cortar inteiro com os cacos espalhados aos seus pés. Sentia ódio de tudo e vontade de gritar até os pulmões estourarem. Apanhou um longo pedaço de espelho, em formato de foice, acocorou-se no chão e como um samurai de Kurosawa fez de si uma triste madame borboleta, em desesperada metamorfose, naquele obscuro canto de cidade. 

Quando a polícia chegou, meia hora depois, já era possível ver um rastro de sangue correndo por debaixo da porta. Sentiram cheiro de tragédia e chamaram uma ambulância para salvar a sua vida.

* * *

Ela não podia acreditar no que estava acontecendo. Semi-acordada, sozinha naquela cama de hospital, tocou o rosto inteiramente coberto de ataduras. Pulsos, pescoço e ventre enrolados em panos ensopados. Teve vontade de chorar. E chorou silenciosamente, soluçando sob a penumbra de seu quarto, enquanto se  agarrava na fria barra de metal de sua cama. Segurava-se na cama com força para não despencar no abismo que parecia querer engoli-la.

E no limiar de seu retorno à sanidade que ainda era possível, chegou a uma revelação: era, definitivamente, a mais feia de todas as mulheres.

E não tinha mais dúvida alguma. Havia se transformado num homem.

Um comentário:

ione disse...

Neste texto formidável,vc visita a psicose.''Shreber''famoso caso de Freud,trata de um homem que em seu delirio acredita estar se transformando em mulher,e passa a vestir-se e enfeitar-se como uma.
perplexidade é o que causa seu texto ao leitor comum,mas não ao psicanalista que sabe que o gênero
nada mais é do que um estilo:homem-mulher,sendo que um não existe sem o outro.

Grande complexidade,seu texto denota o aturdimento da sexuação.
Adorei.