quinta-feira, 18 de março de 2010

FIDÉLIO E O RÁDIO

Fidélio era um homem comum, de hábitos simples e poucas ambições. Havia sido assim por toda a sua longa vida, mas nem por isso se considerava um homem insatisfeito. Pelo contrário, era altivo e agradecido. Tinha 82 anos, viúvo há oito, pai de três filhos e avô de dois netos. Todos homens. Vivia só, num pequeno apartamento onde era assistido por um jovem enfermeiro, Javier; um cubano muito atencioso, contratado por seus filhos depois que ele quebrou uma perna tentando trocar uma lâmpada. "O senhor ainda vai acabar me matando do coração!", dizia Javier, sempre que corria para evitar que aquele homem tão frágil e sem referência da própria condição se machucasse em alguma aventura doméstica.

A saúde de Fidélio era boa mas, segundo o seu médico particular, ele já estaria desenvolvendo um princípio de Alzheimer. Nada muito grave, porém. Isso só era percebido quando trocava os nomes dos filhos ocasionalmente, esquecia o dia da semana ou repetia alguma história. Não mais que isso.

Seus filhos e netos o visitavam com bastante frequência. E ele sempre gostava de fazer da ocasião um evento. Mandava Javier fazer café e comprar biscoitos, dava notas de 5 para seus netos universitários e criticava o governo de 10 anos antes. Quando todos iam embora, Fidélio gostava da companhia do seu rádio e ficava por horas e horas, tarde a dentro, com ele ao pé do ouvido. Quase sempre acordava Javier, há muito cochilando no sofá, para pedir que o ajudasse a se trocar para dormir. O enfermeiro disfarçava o cochilo enquanto Fidélio lhe dava palmadas carinhosas no rosto. "Javier, você sente sono demais"

No seu aniversário de 83 anos, o sr. Fidélio ganhou dos seus netos um ipod recheado de músicas antigas. Eles viam o avô sempre com o ouvido no rádio e tentaram melhorar de alguma forma a sua vida, tão sem caprichos. Fidélio agradeceu com felicidade comovente, mesmo sem nem saber exatamente o que era a caixinha de acrílico em suas mãos. Nunca nem abriu, guardando-o com carinho na cômoda de sua cama, onde deixava um punhado de importâncias: um terço de prata, fotografias de sua mulher, um livro de Pablo Neruda e dezenas de cartas amarradas com fita vermelha.

Desde que se tornou viúvo, Fidélio encontrou uma calorosa companhia no rádio que ouvia em volume tão baixo que todos pensavam estar desligado. Ele podia ficar por horas, sentado quase imóvel, com o pequeno rádio. Atento, como se ouvisse instruções, Fidélio nem parecia dar bola para os acontecimentos ao seu redor. Apenas o rádio tinha importância. Os médicos disseram que era normal, algo como uma muleta emocional, um autismo temporário, e aconselharam os filhos a observar e respeitar o hábito do pai, sem grandes preocupações. Que mal havia em ouvir um rádio, mesmo em volume tão baixo? Era o que ele queria fazer e todos aceitavam. Mas só Fidélio sabia o quão especial era aquele rádio em suas mãos.

Um dia seu neto mais velho perguntou o que tanto ele ouvia com tamanha concentração. Ao que Fidélio retrucou, sorridente e sem cerimônia, que "ouvia a voz de Deus". Todos se olharam por alguns longos instantes e, desconcertados, julgaram tê-lo interpretado de forma equivocada. E deduziram, num melancólico parlamento de silêncios, que ele estava demente. Por mais quatro anos Fidélio continuou na companhia de seu rádio, sempre sob olhos de comoção de seus filhos e netos.

Chovia forte na manhã em que Fidélio se foi. Era como se o céu estivesse de luto. Javier foi acordá-lo para tomar café e o encontrou deitado, imóvel, em paz. Havia morrido em seu sono. Ao lado da cama, sobre a cômoda, percebeu o velho rádio que Fidélio nunca largava. Sorriu como quem sorri de uma criança inocente, segurou o aparelho por alguns instantes e se surpreendeu de como ele era leve. Sacudiu algumas vezes ao ouvido e constatou que o rádio era oco e sequer possuia pilhas. Depositou então o aparelho sobre a cama, ao lado de Fidélio, e sorriu novamente, com certa tristeza. Sentiu pena de Fidélio como nunca havia sentido de nenhuma pessoa antes. Acariciou os cabelos ralos em sua cabeça, fez uma breve oração e foi até a sala para ligar aos seus filhos. "Ele passava o dia inteiro ouvindo um rádio vazio e sem pilhas".

Fidélio parecia dormir o melhor sono de sua longa vida, com o rosto sereno e iluminado com um sorriso de quem não sente culpa. E o rádio estava lá, próximo ao seu corpo.

Eis que na lateral do aparelho uma pequenina luz azul piscou três vezes e desvaneceu, lentamente, em companhia de um chiado que parecia sussurrar até se transformar em silêncio.

De todos no mundo, aquele era o menos vazio dos rádios.

3 comentários:

Ana Lucia disse...

Linda historia!!!Comovente!!!Precisa pensar em escrever um livro!

LILIAN disse...

MAGICO...TÃO RARO,SEUS TEXTOS TEM UMA PUNGENCIA,TANTA COMPAIXÃO POR NÓS
DEMASIADO HUMANOS QUE ME FAZ MAREJAR OS OLHOS.

Luana Ribeiro disse...

Fascinante. Eu nunca paro de me surpreender a cada texto.
Sempre faço uma pausa no dia e visito este blog cujos posts poderiam ser publicados em livro.

É tanta sensibilidade...e há sempre um mistério, um fio de esperança, algo que transcende a compreensão humana em suas histórias.

Não sei quem é o autor, mas agradeço a quem nos presenteia com tão bem colocadas palavras.