Ele não fazia idéia do impacto que sentiria, tão desprevenidamente, ao folhear a revista que há poucos segundos estava esquecida na sala de espera. Uma revista de turismo e aventura, daquelas que ele jamais cogitaria folhear. Sempre há tantas outras mais importantes, de assuntos tão mais interessantes. Mas aquela revista desinteressante, de páginas soltas, por alguma razão misteriosa, roubou seu olhar.
Na capa havia a foto de uma grande extensão de oceano, azul claro e cristalino, algumas ilhas breves desenhadas com graça abraçando um círculo azul escuro ao centro, como um olho índigo no meio de um céu de verão. Meia dúzia de palavras descreviam a edição daquele mês: “os misteriosos abismos azuis”. Quase em transe, como se estivesse com sede, correu dedos desesperados direto para a reportagem de capa.
“O que havia feito de sua vida?”, pensava tanto naquelas semanas que antecediam seus 40 anos. Quatro décadas. “Nós não somos treinados para completar 40 anos”, ele discutia ardorosamente consigo mesmo. É uma idade que não se deve alcançar. “O que havia feito de sua vida?”, ele pensava como um mantra insistente e amargo, a cada nova manhã, a cada nova xícara de café, a cada partida no carro. E a falta de resposta – ou pelo menos uma que fosse convincente – o deixava cada vez mais desesperado. “São anos que não voltam mais, nunca mais. É o começo indiscutível do fim”.
Sua vida, até aquele ponto, havia sido uma jornada de passos medidos, de decisões cautelosas e planos desenhados como uma equação que teria que dar certo. Só poderia dar certo. E a costura dos eventos vividos fora feita com uma linha morna de relacionamentos banais, empregos medíocres, o jantar solitário de todas as noites e mensagens em secretárias eletrônicas, para pessoas que ele sequer lembrava os sobrenomes. Amores e amizades, negligenciados pela passagem dos dias.
Naquela manhã comum, ele tinha uma consulta no oftalmologista. Nem havia a necessidade, para falar a verdade. Seus olhos estavam ótimos e ele sabia disso. Mas fazia parte de suas checagens anuais. Olhos. Dentes. Impostos. Fazia parte do plano. De um plano secreto, íntimo, para que ele não entrasse em colapso. Para que não se lançasse contra a parede como um trem desgovernado. São as correntes pesadas para fixar ao chão aqueles que flertam com o abismo.
Ao dedilhar cuidadosamente as páginas sobre os abismos azuis, fenômenos um tanto quanto misteriosos da natureza - que compreendem túneis de águas profundas em pleno oceano - ele sentia os olhos umedecerem. Na foto principal havia um mergulhador, flutuando como um anjo, descendo sob um manto de luz cortando um longo declive de escuridão azul. “O que haveria lá, que segredos habitavam os abismos azuis?", ele pensava ansiosamente. Outras fotos mostravam corais de múltiplas formas e cores e pedras estranhas, como se demarcassem pontos especiais do planeta. Marcas num mapa.
“O senhor já pode entrar”, disse a atendente, quase sussurrando, sem sequer tirar os olhos do computador. Silêncio. Os dedos interrompem a atrapalhada digitação para constatar que não havia mais ninguém lá na sala de espera.
. . .
“O senhor já pode entrar”, disse-lhe com forte sotaque, um sorriso sincero e um leve tapa nos ombros. "O senhor já pode entrar".
Um comentário:
Sempre fico feliz quando passo por aqui e encontro um novo ''post'',
Achei ''abismo azul'' deslumbrante,vc conseguiu imprimir
cores e densidade ao seu texto...
''simpathy for the devil''trilha sonora apropriada.
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