sexta-feira, 16 de outubro de 2015

AS CRIATURAS ESTRANHAS


Devia ser bem tarde, porque a cidade lá fora já não tinha mais aqueles barulhos que pertencem à noite, mas à madrugada; um carro solitário distante ou o barulho de televisão de alguém que não consegue dormir.

Ele, mesmo na flor dos seus 15 anos, era um insone crônico e, como era habitual, estava perambulando sem rumo, administrando o ruído dos seus pensamentos e se esforçando para não acordar os seus pais e irmãos.

De repente, o barulho da porta do apartamento, sendo destrancada.

Clack! Clack!

Com um susto, ele se virou para a porta que começava a ser aberta, revelando a luz fraca do corredor. Um vulto se projetou, caminhando lentamente rumo à sala. Num impulso, ele correu para o interruptor, para encontrar ali, no batente da porta, o seu pai.

Os dois se olharam por longos segundos. Seu pai, com um olhar que revelava exaustão e melancolia. Ele, surpresa. Primeiro, porque lembrava de ter visto o seu pai indo dormir na hora de sempre. Segundo, porque ele vestia uma camisa coberta de sangue, como se alguém tivesse espirrado tinta no seu peito, rosto, braços.

Seu pai respirava de forma curta, assustado, sem saber o que dizer. E, sem dizer uma palavra, caminhou na direção do quarto, fechando a porta atrás de si. E ele ficou ali, atônito, sob a luz da sala, que iluminava sem sucesso a sua tentativa de construir algum pensamento diante daquela cena.

Apagou a luz e caminhou para o seu quarto. E, com o olhar fixo no teto, adormeceu.

Na manhã seguinte, os dois tomavam café sozinhos na pequena mesa da cozinha. E, como se nada tivesse acontecido, o seu pai decidiu explicar que "existem dois tipos de assassinos". "Aqueles que matam por uma pulsão, um desejo às vezes quase incontrolável", ele disse por trás de uma xícara de café preto e sem nem esboçar qualquer expressão no rosto sempre plácido. 

Uma pausa. Bebericou de forma ruidosa.

"E aqueles que matam pela força ou necessidade da ocasião".

Parou por mais alguns instantes, a boca semi-aberta, o olhar fixo no filho.

"Como a gravidade".

Ele ficou observando o seu pai, enquanto ele falava, a colher com cereal flutuando diante da sua boca aberta. E assim encerraram um dos diálogos mais insólitos da sua vida.

Seguiram com seus caminhos e afazeres, como se nada tivesse acontecido; mas ele nunca, nem por um dia, conseguiria tirar dos seus pensamentos aquelas frases ditas de forma monotônica, como se seu pai estivesse dizendo as horas.

* * *

Algumas dezenas de anos depois, foi como se aquela conversa tivesse voltado à sua mente; súbita como uma onda do mar que quebra nas nossas costas quando a gente menos espera. Ele estava sentado numa livraria, bebendo um café barato, vendo o tempo passar enquanto refletia sobre um punhado de problemas banais.

Então ele a viu, novamente, diante dos seus olhos incrédulos. Paralisado. Aquela mulher, depois de tanto tempo. E era como se tudo ainda fosse tão fresco, as feridas se abrindo de novo, as cicatrizes sangrando pelas linhas de pele esbranquicada.

Ele sentia o coração a galope, o suor frio, aquela sensação de controle e fúria que deve contaminar a mente de todos os predadores. Ele lembrou das palavras do seu pai, martelando na sua cabeça, sonoras, pesadas, nítidas.

O fato é que ele simplesmente sabia que deveria fazer aquilo. Melhor, que queria fazer aquilo. Bebeu o resto do café com um gole, depositou um punhado de notas não conferidas sobre a mesa e caminhou lentamente.

A imagem do guepardo traiçoeiro na savana estampava os seus pensamentos desconexos, febris. Era hora de cobrar uma dívida que nunca fora paga. Ele encostou a mão no ombro da mulher, forçando-a a se virar. Um olhar de surpresa, um sorriso de desconforto. Sim, era ela.

"Lembra de mim?", ele perguntou sem muito interesse na resposta.

* * *

A água escorria morna pelo seu corpo, enquanto ele permanecia ali, por longos minutos, sob o chuveiro; o vapor envolvendo o banheiro numa névoa agradável, enquanto ele sentia as pancadas da água sobre a sua cabeça, pescoço, toda aquela sujeira escorrendo pelo ralo.

Terra, sangue, restos de pele e cabelo. Tudo desaparecendo pelos pequenos furos de aço no chão.

E as palavras do seu pai ecoavam, talvez um pouco mais fortes, nas paredes da sua cabeça. Sim, a força; a gravidade da ocasião. Algo que é preciso ser feito. Sim, sim, ele compreendia exatamente o que o seu pai queria dizer naquele café da manhã insólito.

Saiu do banheiro, secando o cabelo sem pressa. Caminhou até a cozinha, abriu a geladeira, sem saber ao certo o que desejava. Mordeu uma maçã de forma ruidosa. Ao fechar a porta, encontrou a sua filha, parada, quase fantasmagórica, olhando-o em silêncio.

Os dois ficaram se observando por longos e desconfortáveis instantes. Aquela linda menina, na flor dos seus 16 anos, os cabelos dourados cascateando sobre os ombros; o olhar azulado, frio, que lembrava o do seu pai. Aquela linha vermelha, que costurava as suas almas numa tapeçaria de fúria e caos. Todos eles, aquelas criaturas estranhas.

"Eu achei a sua roupa ali atrás. Aquilo é..."

"Eu vou jogar fora", ele interrompeu a menina.


"Mas tem algo que eu gostaria de te explicar".

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