segunda-feira, 27 de outubro de 2014

NÓS


"Nós somos tóxicos, você e eu", ela disse da janela, os olhos perdidos no horizonte, os seios expostos, o cigarro queimando preguiçosamente na mão, a calcinha de estampa camuflada que ele gostava, "e ficamos viciados um no outro".

Suspirou, de olhos fechados.

Ele ficou ali, mergulhado nos lençóis desfeitos, daquela noite insone, olhando a mulher na janela. Traçando com os olhos o contorno do cabelo bagunçado, aquela selva vermelha, selvagem, dançando no vento tímido como flâmulas de um campo de batalha recente. A pele branca, salpicada de sardas feito constelações caóticas, os seios nus, pequeninos como dois pêssegos, o pelo dourado cobrindo o corpo magro, as pernas longas, os pés delicados, de bailarina. 

"Você tem razão", disse, por fim. 

Silêncio. Alguém ouvindo música não muito longe dali, barulho de pássaro, de rua, de conversa fiada. Ele acomodou os braços atrás da cabeça, os olhos fechados, voando em pensamentos curtos, sentindo a areia do sono vindo visitá-lo, tornando suas ideias desconexas, abrindo caminho para os sonhos. 

Sentiu o corpo dela, morno, ajeitando-se próximo do seu, encaixando-se como ela sempre fazia, aninhando a cintura na sua, enlaçando as pernas feito trança, trancando-se como chave e fechadura. Abraçou a mulher, ouvindo a sua respiração profunda. Correu os dedos, leves, aéreos, por sua cintura, barriga, pescoço; beijou o seu rosto, escondendo-se na floresta vermelha que tapava o seu rosto como uma máscara. Respiravam juntos, suspiravam juntos. 

Conspiravam.

Havia algo mágico, doce, no amor e na melancolia que eles partilhavam naquela manhã inebriada por beijos, cansaço, sexo e conversas que não chegavam a lugar algum. Amavam-se, muito, perdidamente, isso era fato. Mas havia algo nocivo que, com igual força, os magnetizavam. Amarrados por nós, mãos, pés, olhos, mentes, corpos, almas.

Adormeceram novamente, mergulhados naquela cama desfeita, onde haviam travado combate; os panos cobertos de evidências, de cheiros, de marcas. As roupas espalhadas pelo chão, ela vestindo a sua camisa para se proteger do frio, ele com as mãos escondidas entre as suas pernas, um quebra-cabeças feito por dois corpos que não queriam se soltar. 

"O que fazemos?", ela sussurou. "Para onde a gente vai daqui".

Um carro cruzou a esquina. Havia domingo demais naquele domingo.

"Eu não tenho a menor ideia", respondeu. Ela voltou a fechar os olhos, buscando as mãos dele, abraçaram-se mais forte. Ela não conseguia disfarçar as lágrimas; ele notou o movimento no seu abdômem, a respiração curta; fez carinhos no seu cabelo, costas, correndo a mão pela pele branca, os pelos arrepiados como um campo de grama selvagem; vê-la chorar era como um soco em seu estômago. Beijou seu ombro, sentindo toda a dor do mundo. A vida tem dessas perguntas sem respostas, becos sem saída, escolhas difíceis demais. Ele, ela. 

"Nós somos tão cheios de nós", ela suspirou, por fim, buscando a sua boca mais uma vez. 

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