Ele acordou mais cedo que o de costume. Sentou-se de forma preguiçosa à janela, observando a chuva que caia igualmente preguiçosa lá fora, lavando as paredes do prédio, fazendo poças na calçada onde algumas crianças começavam a brincar.
Pêlos do seu braço arrepiados no compasso do seu coração e do café que fumegava em suas mãos, boca e garganta. É que ele pensava nela.
"Por favor, não me faça tão feliz", aqueles olhos eloquentes, aquelas bocas sem espaço para despedidas. Ele pensava. "Por favor, não me faça tão feliz".
Caminhou descalço para o quarto, os pés gelados sobre o assoalho. Aquele barulho gris ao seu redor, aquela chuva, aquela manhã emocionada. Aquela tempestade que abraçava o seu apartamento com algo de dor, algo de violência, algo adequado.
Algo.
Sentou sobre a cama, aquele misto de ansiedade e frio na barriga, como quem espera por um primeiro beijo. Abriu a caixa de fotografias com delicadeza. Memórias que já não se costuravam com tanta força. Ele já não sabia a cadência correta daqueles eventos, a cronologia, o que vinha antes, o que vinha depois. Cabelos mais curtos e mais compridos. Roupas, modas, cidades. Risos, beijos, restaurantes. Animais e monumentos. Ele e ela. Aquele passado breve. Aquele tempo sem fim.
Aquele tempo sem volta.
"Por favor, por favor, não me faça tão feliz".
Remexia as fotos entre os dedos, como cartas de baralho. Sorria. Espalhava-as sobre a cama desfeita como tarô. Aquele vento, aquela maresia, aquelas flores, de repente o quarto ganhava sensações salinas e de floresta, de calor e de frio. É que ele pensava nela.
Quando ele pensava nela. Como pensava.
Gotas tímidas despencavam dos cantos de olhos e janelas. Uma a uma, compondo manchas pequeninas, algo de pintura abstrata. Caindo, em sequência, um bombardeio melancólico de quem viaja ao passado. Ao passado bom. Tocava com as pontas dos dedos o seu corpo, aquela saudade, aquele vazio, aquela ausência, aquela distância, aquela escolha.
Já não se lembrava ao certo como tudo aquilo havia começado ou os eventos que culminaram no fim. Lembrava do meio. Da essência, do melhor. Da antecipação. Havia um cheiro, um sabor, um gosto de suor e saliva que ele ainda conseguia resgatar em algum canto não esquecido de sua língua. Conseguia sentir a sua pele, seus contornos, suas reentrâncias, ela estava ali, naquele emaranhado de lençóis solitários. Ela ainda estava ali, em algum canto.
Estaria sempre.
Recolheu as fotos, os ingressos de cinema, os cartões amassados, aqueles fragmentos de lembranças, aquela história contada como um caleidoscópio de vinho e veneno. Depositou tudo na caixa, como quem arruma um brinquedo. E guardou-a de volta no armário, entre agasalhos e sapatos, onde ela sempre ficava. O vento gelado que costurava uma trajetória entre a rua e o seu rosto o fez buscar um casaco para aquecer o seu corpo.
"Porque eu não saberia como viver sem você".
E seguiu para o começo de mais um dia, fechando a porta atrás de si de olhos fechados.
Um suspiro, uma prece, um sorriso.
E se fez acreditar, como sempre fazia, que tudo aquilo havia sido apenas um sonho.