Ubirajara, mais conhecido como "vô Bira", era um sujeito incomum. Hippie inveterado, socialista fervoroso, sentia orgulho de ostentar uma longa cabeleira prateada que, ocasionalmente, prendia num descuidado rabo-de-cavalo. Meio extraterrestre, seu lugar preferido - e refúgio - era uma chácara a quase 2 horas de distância da cidade, onde passava os seus dias conversando com passarinhos, pescando peixes num lago - para em seguida devolvê-los à água - e matando mosquitos com os pés, hobby responsável por um punhado de mesas quebradas, marcas de pés nas paredes e três divórcios.
Ele vivia como um hermitão, feliz, sempre de pés descalços. Era de sua "herança indígena", ele dizia orgulhosamente quando recusava, pela centésima vez, um par de sapatos de presente. Gostava de caminhar com os pés no chão, tão sujos e mal tratados, que era quase como se ele tivesse desenvolvido uma sandália orgânica que deixava uma silhueta inconfundível na parede após mais uma tentativa de extermínio de zumbidos.
Vô Bira gostava da natureza. De tirar fotos das árvores, de tomar banho sem roupa no rio, de deitar sob o sol e comer frutas e legumes frescos, ainda com aquele aroma de terra. Não tinha inibições nem quando deixava a todos desconfortáveis com alguns de seus hábitos de nudismo ou mera falta de traquejo social.
Ninguém lembrava, ao certo, quando ele havia comprado roupas novas. Era impossível lembrar. Uma foto antiga, do primeiro casamento, era a lembrança coletiva de todos. Vô Bira vestindo terno e gravata. Depois disso, camisetas manchadas e shorts tão furados que pareciam tangas, como se ele estivesse enrolado em uma rede artesanal de pesca. Ele pouco se importava. E ria, um riso solto, uma gargalhada inocente de quem descobriu, antes de todos, que não faz muito sentido em se preocupar tanto com as miudezas que nos tornam civilizados.
Ele não gostava de dinheiro. Nem de televisão. Nem dos correios. Nem de colônia pós-barba. Gostava da sua casa, da sua bagunça ordenada e do que a vida ao seu redor provia. Frutas, legumes, um pequenino cercado onde criava galinhas. Sentia pena de cada uma que abatia, claro, e sempre fazia questão de cumprir todos os rituais funerários. Mas era impossível, mesmo para ele, abrir mão do seu prazer mais mundano: galinha assada, com batatas e arroz.
Não bebia. Não muito, pelo menos. Nem fumava, salvo por alguns charutos que ele gostava muito mais pelo aroma da fumaça e pelo fato de que o hábito ocasional o fazia lembrar Fidel Castro. Quem fizesse a comparação ganhava muitos pontos de simpatia com o vô Bira.
Tinha dois cães e dois gatos que viviam harmoniosamente. "Os animais são socialistas!", dizia, da janela de casa, apontando para os animais juntos no quintal. Vô Bira gostava das crianças da família. Dos netos novos. Dos novos casamentos e das formaturas. Celebrava as pequenas conquistas de todos e nunca esquecia de nenhum dos aniversários. Cada aniversariante da família podia ter pelo menos uma certeza em seu dia: de que receberia uma ligação, no raiar da manhã, com uma voz rouca e melodiosa do outro lado da linha cantando - com fortíssimo sotaque - alguma canção de Bob Dylan, dos Beatles ou dos Rolling Stones. "Sympathy for the Devil", foi a minha última. Acho que mais por uma provocação a minha mãe do que qualquer outra coisa. Sorrio, todas as vezes que lembro disso.
Mas que criaturas misteriosas somos nós, que nos permitimos afastar de um ser de outro planeta como era o nosso avô Ubirajara. Um personagem de livro que vivia ali, a quase duas horas de nós. Deixamos esse tempo passar e não aproveitamos a sua companhia. Quase nada dela, salvo pelas obrigações familiares. Alguns por falta de tempo, outros por vergonha, outros tantos por incômodos quaisquer. A verdade é que deixamos o vô Bira de lado, em detrimento da "vida que importava". Deixamos ele passar.
Quando ele morreu, somente então, percebemos o valor daquela existência escondida, no meio do mato, entre os bichos e as frutas. Mas era tarde demais.
Fechar a casa do vô Bira pela última vez. Vendida. Futura pousada. E então, só então, descobrimos a desesperadora impossibilidade de voltar o tempo perdido e o reino de órfãos que, repentinamente, havíamos nos tornado.
Fechar a casa do vô Bira pela última vez. Vendida. Futura pousada. E então, só então, descobrimos a desesperadora impossibilidade de voltar o tempo perdido e o reino de órfãos que, repentinamente, havíamos nos tornado.
2 comentários:
Só lagrimas Rodrigo.Sem palavras.
O reino dos órfãos é um lugar solitario..E uma saudade que ninguém pode compartir...
E uma saudade tao doida...E de tudo...Até do caos telúrico ou do caos real se é que vc me entende..De uma casa maluca..De um tal de elemento filtrante..De um riso timido...
Lagrimas sim!
Parabéns pelo texto ! Emocionante
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