terça-feira, 12 de janeiro de 2010

"HOMENS NÃO CHORAM"


Meu pai era um homem bruto e sem educação. Havia estudado o suficiente para conseguir assinar seu próprio nome e sua maior decepção era que eu e meus dois irmãos fossemos "doutores", apesar de nenhum de nós termos diploma de médico ou advogado. Três meninos, oriundos de uma família humilde, religiosa. Três meninos que conseguiram na faculdade uma chance de fuga. Nos formamos para fugir. Amávamos papai e mamãe, mas desde muito cedo todos sabíamos que nosso lugar seria sempre longe dali. Mamãe era uma mulher silenciosa, de poucos dentes e poucas palavras. Papai era um homem de mãos calejadas e cheiro de fumo. A única coisa que o pai sempre nos ensinou, porém, é "que homens não choram".

E isso valia para tudo na vida, não importando a dor ou o sofrimento. Homens não choram. Nem quando ele batia em nós. Mas ele era um homem bom, um homem honesto. O coração era bom, generoso, ainda que do seu jeito. Nunca deixou que nos faltasse nada e não foram poucas as vezes em que o víamos sair de casa com o céu escuro das 4 horas da madrugada e voltar muito depois de o sol se pôr, com os pés feridos e as costas dobradas feito ferro fundido.

Ele não gostava de conversar com a gente. Naquela época, eu achava que era porque ele não gostava de nós. Hoje eu compreendo, com pena e culpa, que ele sentia medo de nós. De que falassemos de coisas que ele não entendesse. De que perguntassemos coisas que ele não soubesse responder. Papai era um homem simples, do campo. Seu universo era feito pelos grãos, pela terra, pelas mãos sujas de trabalhador que veste sua camisa com menos furos para ir à igreja.

Quando queríamos conversar com ele, quando pedíamos um pouco de sua companhia, ele nos mandava ajudar a mãe com os afazeres da casa. Era um homem de ferro, um gigante, que, perto de completar setenta e dois anos, aparentava vinte anos a menos em saúde, aparência e vigor. Era um homem forte que, mesmo tão velho, não aceitava ajuda. "Homens não choram".

Ainda me aperta o coração lembrar de quando ele me levou para a rodoviária. Eu era o último irmão indo embora "para virar doutor". Meu pai me deu um aperto de mão mais forte, apertou meu braço por alguns segundos e me desejou boa sorte. Mas eu conseguia ver, por detrás dos seus olhos claros cada vez mais transparentes, a dor da despedida e o desejo desesperado de dizer tanta coisa sem poder, refém de si mesmo. Lembro de sua mão estendida, acenando adeus e em seguida recolocando o chapéu na cabeça baixa. O pai nunca havia abraçado nenhum de nós.

Tentávamos mandar dinheiro, presentes, mas ele não aceitava. Roupas, sapatos, meias, tudo era entregue para a igreja. Ele era um homem bom. Bruto, cheio de arestas sem polimento, mas um homem de bem. No dia em que mamãe morreu, voltamos para encontrá-lo sozinho naquela casa que parecia ainda menor para os nossos olhos de homens feitos. Ele estava sentado num pequenino banco de madeira, na frente de casa, onde mamãe costumava descascar milho. Tinha, então, 82 anos ainda que aparentasse muito menos. E nos cumprimentou, com um leve aceno de cabeça. Meus irmãos e eu sabíamos que não o veríamos por muito mais tempo. Queríamos ficar ali, em sua companhia, mas ele continuava relutante. Perguntava pouco sobre nossas vidas e para todas as nossas investidas, dizia que não estava precisando de nada. Meus irmãos voltaram, mas eu decidi ficar por mais alguns dias para descobrir o pai que nunca conhecemos e que eles jamais conheceriam. O pai morreria três dias depois.

Quando eu estava arrumando minha mala para ir embora, ele veio até o quarto, parou com timidez à porta, e me chamou para irmos à cozinha. Sentamos à mesa, tomamos um café de fazenda, coado no pano. E foi então que papai resolveu lembrar de seu tempo de menino, de quando roubava mangas, das primeiras namoradas, de quando começou a trabalhar na lavoura, quando conheceu mamãe, quando cada um de nós nasceu, cresceu e foi embora. Ele olhava para baixo, envergonhado, como se estivesse confessando um crime e eu o sentia engasgar com as próprias palavras. Havia tanta coisa guardada ali, como água represada, suplicando por liberdade. Segurei e acariciei sua mão por alguns instantes e ele não apresentou nenhuma resistência.

"Papai, me ajuda a cortar algumas cebolas?".

3 comentários:

Luana Ribeiro disse...

Incrível!
Eu leio sempre este blog, que descobri por acaso, procurando um blog homônimo.
Pouco comento aqui, apesar de sempre me deliciar com os posts frequentes, mas este muito me inspirou a fazê-lo.
Gostei muito do texto! Aceitar uma mudança sem ferir uma verdade que já foi absoluta também é um exercício para uma vida inteira.

LILIAN disse...

Concordo com a Luana! éste texto é sobre a profunda delicadeza de nem sequer tentar mudar as certezas embrutecidas,e acolher com ternura a coragem timida que ainda,de mudar.
lindo!
não precisei de cebolas para chorar...

VIVIAN disse...

Precioso.
Uma joia este texto.
Inteligencia fina,compreensão incomum
da complexidade e paradoxos da existencia humana.