Dificilmente Nikolai se afastava da janela. Era sua morada, seu refúgio. Era o espaço onde passava dias e noites, noites e dias, com breves interrupções para os outros afazeres de sua vida. Nikolai era conhecido por sua discrição. Movimentos curtos e precisos, caminhar comedido, silencioso e elegante, mas carinhoso e dedicado com seu principal protetor: um senhor de 89 anos, famoso professor de música, já nos últimos suspiros da sua passagem pela terra.
Nikolai foi praticamente adotado por ele, num desses acasos do destino em que duas almas se esbarram por alguma razão qualquer e decidem continuar juntas. Nikolai e seu protetor eram companheiros fiéis numa vida de muitos silêncios. Nos dias ensolarados, o velho gostava de caminhar até a esquina, onde comprava peixe e pão frescos. Almoçavam juntos, salmão e pão preto, no terraço do velho apartamento em Paris.
Em dias chuvosos, gostavam de contemplar juntos a janela molhada e a cidade cinza no horizonte restrito daquele recorte de meio metro quadrado que emoldurava uma Paris lindamente iluminada e colorida. Nesses momentos, o velho bebericava conhaque e balbuciava algumas lembranças desconexas de um passado já há muito perdido na poeria do tempo. Um passado de recitais e alunos medíocres, de festas e moças mais ávidas por casamentos de contos de fadas do que pelo saber musical. Nikolai não se manifestava e preferia observá-lo atento, ocasionalmente se distraindo por algum passarinho na janela ou um bocejo incontrolável. Nada que incomodasse o velho, no entanto.
E assim eram os últimos dias daqueles dois amigos inseparáveis. Até que, enfim, o velho professor não se levantou mais de sua cama solitária. Havia partido. Nikolai entrou vagarosamente no quarto, passo ante passo, e contemplou o corpo frio sobre o catre daquele quarto sem luxo, incrédulo à sua maneira e demonstrando supresa e melancolia. Sentou-se por alguns instantes e olhou para o teto como se conseguisse visualizar seres flutuantes. E resignou-se com a ideia de que seu protetor o havia deixado, caminhando lentamente até o antigo piano que decorava a sala como uma ilha de mogno vermelho num oceano de cinzas.
Lá, deitou elegantemente sobre o teclado frio que abraçou seu corpo pequenino como uma almofada de marfim e ébano. Fechando os olhos vagarosamente, pareceu-lhe estar ingressando em mais num daqueles sonhos enigmáticos que tinha quase todas as noites. Seus sonhos de gato. Sonhos em que não era um gato, mas um garotinho solitário.
Nikolai foi praticamente adotado por ele, num desses acasos do destino em que duas almas se esbarram por alguma razão qualquer e decidem continuar juntas. Nikolai e seu protetor eram companheiros fiéis numa vida de muitos silêncios. Nos dias ensolarados, o velho gostava de caminhar até a esquina, onde comprava peixe e pão frescos. Almoçavam juntos, salmão e pão preto, no terraço do velho apartamento em Paris.
Em dias chuvosos, gostavam de contemplar juntos a janela molhada e a cidade cinza no horizonte restrito daquele recorte de meio metro quadrado que emoldurava uma Paris lindamente iluminada e colorida. Nesses momentos, o velho bebericava conhaque e balbuciava algumas lembranças desconexas de um passado já há muito perdido na poeria do tempo. Um passado de recitais e alunos medíocres, de festas e moças mais ávidas por casamentos de contos de fadas do que pelo saber musical. Nikolai não se manifestava e preferia observá-lo atento, ocasionalmente se distraindo por algum passarinho na janela ou um bocejo incontrolável. Nada que incomodasse o velho, no entanto.
E assim eram os últimos dias daqueles dois amigos inseparáveis. Até que, enfim, o velho professor não se levantou mais de sua cama solitária. Havia partido. Nikolai entrou vagarosamente no quarto, passo ante passo, e contemplou o corpo frio sobre o catre daquele quarto sem luxo, incrédulo à sua maneira e demonstrando supresa e melancolia. Sentou-se por alguns instantes e olhou para o teto como se conseguisse visualizar seres flutuantes. E resignou-se com a ideia de que seu protetor o havia deixado, caminhando lentamente até o antigo piano que decorava a sala como uma ilha de mogno vermelho num oceano de cinzas.
Lá, deitou elegantemente sobre o teclado frio que abraçou seu corpo pequenino como uma almofada de marfim e ébano. Fechando os olhos vagarosamente, pareceu-lhe estar ingressando em mais num daqueles sonhos enigmáticos que tinha quase todas as noites. Seus sonhos de gato. Sonhos em que não era um gato, mas um garotinho solitário.
* * *
Um solavanco repentino retirou Nikolai de seu sono profundo como um susto. O trem acabava de chegar à estação, consumindo tudo ao seu redor em fumaça e barulho. Era uma manhã muito fria quando Nikolai chegou com sua mãe à Paris, em 1948.
"Veja, Nikolai, que linda cidade. Seremos felizes aqui, meu filho, estou certa de que seremos felizes aqui".
Nikolai olhou para sua mãe, que sorria, maravilhada com os ares de Paris. Filho de um paraquedista morto na guerra, Nikolai chegava à cidade e enfim conheceria o seu avô, que não via desde o seu nascimento. Com a luz que lentamente começava a despontar, colorindo as ruas preto-e-branco, Paris se descortinava diante de seus olhos iluminados e ávidos pelas novidades. Nikolai aprenderia a tocar piano com o seu avô. Era esse o plano. E rapidamente o menino esqueceu de seu sonho. Mais um sonho enigmático em que era, não um garotinho, mas um gato de pelo listrado e olhar silencioso.
Um comentário:
Este mee arancou lágrimas silenciosas,
Comovente e poético.
Um sopro,um sussurro,um devaneio urbano,um sonho.
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